Caminhoneiros: o maior impacto na História do Brasil. Por Aldo Fornazieri

Atualizado em 28 de maio de 2018 às 8:14

Publicado originalmente no jornal GGN

POR ALDO FORNAZIERI, professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP)

Caminhoneiros fazem protesto contra a alta no preço dos combustíveis na BR-040, perto de Brasília (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

“O medo tem alguma utilidade, mas a covardia não”(Gandhi)

Nenhum acontecimento da história do Brasil teve um impacto tão avassalador sobre o conjunto da sociedade e do Estado, em todas as suas dimensões, tal como este produzido pelo movimento paredista dos caminhoneiros. Nem a Independência, nem a proclamação da República, nem a Revolução de 1930, nem a Segunda Guerra, nem o golpe militar de 1964, nem o Plano Collor, nada produziu um efeito tão universal sobre todos os aspectos da vida nacional. Com exceção de poucos lugares remotos do país, todos os demais lugares setores foram afetados. Nem mesmo uma guerra teria um efeito tão avassalador. Foi como se o Brasil fosse atacado em todo o território nacional, em todas as suas cidades, em todos os ramos de atividade, em todas as linhas de  abastecimento. A singularidade que o movimento dos caminhoneiros produziu talvez não tenha similaridade em nenhum outro país.

O movimento dos caminhoneiros revelou o grau de abandono do povo brasileiro e desnudou a mediocridade da política nacional – da direita, do centro e da esquerda; do governo e da oposição. Pôs à luz do sol a falência das instituições do Estado, dos partidos e das lideranças políticas. Espatifou a autoridade do Executivo, do Legislativo e do Judiciário reduzindo-os à impotência. Emudeceu os falsos moedeiros do mercado e ensinou aos movimentos populares como se para o país. Comprovou os equívocos das nossas opções estratégicas de desenvolvimento. Ninguém tinha nada a fazer e ninguém tinha nada a dizer. O povo, mesmo sacrificado pelo desabastecimento, na sua sabedoria espontânea, fez o que era certo: apoiou o movimento porque suas demandas são justas e o que é justo precisa ser apoiado.

Temer, o chefe da quadrilha governamental, depois de ter mergulhado o país no caos e nos desgoverno, depois de ter humilhado o povo brasileiro, depois de ter destruído os parcos sentimentos de sociabilidade, depois de ter extinguido direitos e de ter conspirado contra os interesses nacionais, fez o  que de mais ridículo se pode fazer: fez um acordo com as entidades representativas das empresas de transporte para depois acusá-las de locaute. Trata-se da estupidez elevada à máxima potência.

O movimento dos caminhoneiros revelou também a desorientação das oposições, das esquerdas, a sua falta de compreensão da conjuntura, sua incapacidade de se conectar com os sentimentos do povo,  a escassez de líderes virtuosos e competentes e a falência das direções partidárias. No seu temor crônico, a primeira coisa que as esquerdas viram no movimento, particularmente setores petistas, foi uma conspiração para um golpe militar e para cancelar as eleições. Em consequência deste pavor, demoraram em dar apoio aos caminhoneiros e, quando o deram, foi com toda a cautela do mundo e de forma protocolar e formal, através de notas. Em tudo isto ocorreram exceções, claro, a exemplo de movimentos sociais e da Frente Povo sem Medo.

O presidente da CUT emitiu a seguinte recomendação: “O governo deve sentar à mesa e negociar com seriedade, respeitando todos os representantes dos movimentos”. A nota da entidade recomendou também que o governo mude a política de preços dos combustíveis. Belos conselhos a um governo golpista, nessa plácida aceitação, como se fosse possível sair daí alguma seriedade. As oposições só tinham uma coisa digna a fazer: apoiar os caminhoneiros, exigir a renúncia de Temer e de Pedro Parente colocando-se em sintonia com o sentimento de indignação da sociedade e chamar manifestações em favor dessas consignas. A nota do PT também sequer pediu a renúncia de Temer e de Parente.

Era preciso entender que o movimento dos caminhoneiros suscitou uma enorme disputa política junto à opinião publica que voltou suas atenções de forma concentrada para os acontecimentos e desdobramentos da paralisação. O temor das esquerdas impediu que a disputa fosse feita de forma consequente e correta. Grosso modo, os caminhoneiros ficaram a mercê da direita.

Dividir para conquistar e unir para governar

Os grandes estrategistas da história, quando estavam em dificuldade ou dispunham de força insuficiente para combates decisivos, sempre agiram com a seguinte premissa da astúcia: dividir os inimigos e agregar o máximo de forças possível sob o seu comando. Os partidos de esquerda, alguns por pruridos infundados, outros por perda da noção da disputa política, preferem jogar as forças confusas ou intermediárias para o lado da direita. Grandes estrategistas como Felipe da Macedônia, Júlio César e Mao Tse Tung, entre outros, adotaram com eficiência esta estratégia. Quando, em 1937, os japoneses invadiram a China, Mao não vacilou em adotar a estratégia da frente única anti-imperialista. Foi com essa estratégia que reorganizou e fortaleceu o Exército Vermelho, tornando-o apto a triunfar.

Em A Arte da Guerra, Maquiavel faz uma síntese clara das estratégias vencedoras para conquistar o poder: dividir para conquistar. E em O Príncipe, mostrou qual a melhor estratégia no governo: unir o povo para governar. A rigor, o PT inverteu essas estratégias. No governo, adotou a estratégia da tirania: “divide et impera”. E na oposição busca o isolamento, jogando forças disputáveis para o lado do inimigo.

Era preciso perceber que nem todos os caminhoneiros são pró-Bolsonaro e favoráveis à intervenção militar. Mais do que isso: ao apoiar a paralisação e exigir a renúncia de Temer era a forma mais consequente de disputar setores da sociedade, humilhados, indignados e revoltados. O PT não consegue entender que parte do eleitorado de Lula pode votar em Bolsonaro e parte também quer a intervenção militar como solução da crise. Os dirigentes do PT não conseguem compreender os sentimentos difusos e confusos da espontaneidade popular.

Aliás, os dois líderes que compreenderam bem os sentimentos populares, terminaram mal: Getúlio Vargas foi levado ao suicídio e Lula foi posto na prisão. Esta é a tragédia do povo brasileiro. Um povo abandonado por todos. As elites só agem para assaltar o povo e, os progressistas, com a ressalva das exceções, só pensam em eleições e nas benesses dos cargos. O povo é massa de manobra, número de votos. Na paralisação dos caminhoneiros, em face da ausência de líderes e de partidos que indicassem caminhos, cada indivíduo ficou por sua própria conta, mergulhado nos transtornos do desabastecimento e na sua indignação solitária.

A incapacidade das esquerdas de lidar com os sentimentos confusos da espontaneidade popular faz com que setores desse segmento, diante do desespero social, do desemprego, da falta de direitos, busquem saídas na extrema-direita. Este fenômeno, que vinha acontecendo nos Estados Unidos e na Europa, parece estar chegando na América Latina. Como as esquerdas não são capazes de estimular o calor da solidariedade combativa, a direita desencadeia a fúria da solidão ressentida.