Cantanhêde elogia o “esforço quase heroico” de Padilha e Moreira Franco em salvar o país. É sério. Por Miguel Enriquez

Atualizado em 3 de junho de 2018 às 17:31

POR MIGUEL ENRIQUEZ

Uma espécie de Miriam Leitão do jornalismo político, com menos projeção, Eliane Cantanhêde notabilizou-se em sua longeva carreira por elogiar os governantes de plantão, desde que não fossem do Partido dos Trabalhadores.

Autora de uma frase memorável, ao definir os participantes de uma convenção do PSDB, como “cheirosos e limpinhos”, repetiu a dose nos primeiros meses do governo Temer ao participar de um Roda Viva amigo no Palácio do Planalto, com uma frase sobre os dotes literários do presidente: “de romance ele entende”.

Essa capacidade histriônica manifestou-se com força, novamente, em sua coluna no Estadão deste domingo, dia 3.

Com o título de “Isolados e sob ataque”,  ao discutir as consequências da greve dos caminhoneiros e da posterior renúncia do presidente da Petrobras, Pedro Parente (“excelente gestor, um dos três pilares tucanos na economia de Michel Temer e lustroso integrante do ‘dream team’ original do governo”), o texto é uma obra prima da colunista.

Para a provável estupefação de seu leitores, Cantanhêde revela a existência, até aqui ignorada pelos brasileiros, de uma versão tupiniquim dos Varões de Plutarco instalados no Palácio do Planalto e adjacências, sempre prontos a contribuir com o melhor de si para o bem do País.

“Nesses tempos de raiva e indignação contra tudo e contra todos, há que se reconhecer o esforço quase heroico dos homens de Estado que estão trabalhando 20 horas por dia, dando a cara a tapa na TV e enfrentando um rombo crescente no casco fiscal para levar o barco até 31 de dezembro, sob o lema de que o Brasil não pode parar”, escreveu.

Mais surpreendente, ainda, foram os nomes que encabeçavam a lista desses heróis até agora anônimos. O primeiro deles foi Eliseu Padilha, chefe da Casa Civil, seguido por Moreia Franco, do Ministério de Minas e Energia, ambos da entourage de Temer.

Além deles há, nas palavras de Cantanhêde, “uma tripulação que sacoleja, mas não arreda pé da sua missão, como Raul Jungmann, Ilan Goldfajn, Eduardo Guardia, Sergio Etchegoyen, Eduardo Villas Bôas, Silva e Luna, Ademir Sobrinho e uma única mulher, Grace Mendonça”.

Segundo ela, o governo é o mais impopular da história, o presidente Michel Temer continua sob pressão da Justiça, há milhões de desempregados, o cobertor dos recursos é curtíssimo, o Congresso é rebelde, e a mídia, implacável.

“E lá estão eles, por motivações e interesses distintos, mas com a disposição inarredável de não pular do barco e deixar o País afundar de vez.”

Comovente.

Cantanhêde chega a destacar alguns personagens, como Raul Jungmann, ministro da Segurança, “fora da Lava Jato e, agora, na linha de frente contra a crise dos caminhoneiros”, Ilan Goldfajn, presidente do Banco Central, e Eduardo Guardia, o substituto de Henrique Meirelles no Ministério da Fazenda, definidos como homens de Estado.

“Ao que se saiba nunca se meteram em negociatas e têm como ambição servir como homens públicos, acertar nos seus propósitos e merecer reconhecimento.”

Além de uma referência aos generais, almirantes e brigadeiros da cúpula militar, não faltou, também, uma menção especial para Grace Mendonça, a titular da Advocacia-Geral da União (AGU), para dar um toque feminino à essa legião próceres da Nação.

E surge um novo personagem que cresce, aparece e conquista não só assento no gabinete de crise do Planalto, mas também interlocução – e respeito – no Supremo, no STJ, na PGR, na área militar e na mídia. Trata-se de Grace Mendonça, da Advocacia-Geral da União (AGU)”, disse Cantanhêde.

De arrepiar mesmo, é o desfecho, daqueles para serem lidos ao som do Hino Nacional, com os olhos marejados. “Com tanta desgraça, tanto ódio, o governo está ilhado, em meio ao dilúvio, e é preciso lembrar que nem todo mundo é ladrão, mal-intencionado e opera para afundar o Brasil”, afirmou.

“Há muito marinheiro arriscando a saúde e a imagem para entregar o leme para o próximo presidente. Não é fácil, nessas condições de tempo e temperatura, botar a cara na TV e falar por este governo. Mas o mote deles não é um governo, é um País, o nosso País.”

Perfeito para encher de orgulho o Brasil verde-amarelo, o artigo de Cantanhêde padece, no entanto, de um pequeno lapso, ao afirmar que “nem todo o mundo é ladrão”, e que a prova disso é o dream team da crise.

Só pode ter sido fruto de um inesperado (ou providencial) lapso de memória incluir Padilha e Moreira Franco nesse panteão de varões.

As duas eminências pardas do governo Temer, Padilha e Moreira Franco, também denunciadas por malfeitos em outras esferas, são figurinhas carimbadas da lista de delações da Odebrecht.

De acordo com a Procuradoria-Geral da República (PGR), que conseguiu recuperar dados contidos no sistema Drousys da Odebrecht, há robustas provas contra a dupla de recebimento de propinas- nada menos de R$ 13,3 milhões, em dinheiro vivo.

Padilha, que já era chamado de Eliseu Quadrilha pelo falecido senador Antônio Carlos Magalhães, é conhecido pelos singelos apelidos de “Fodão”, “Primo” e “Bicuira” nos arquivos da corrupção da empreiteira baiana. Moreira Franco, transformado em ministro por Temer para escapar da Lava Jato, é o “Angorá”.

Estranhamente, a colunista do Estadão, omitiu um personagem de relevo no enfrentamento da revolta dos caminhoneiros. Trata-se de Carlos Marun, ministro da Secretaria de Governo de Temer.

Provavelmente porque o corpulento e truculento Marun não se enquadre na categoria de “limpinho e cheiroso”, tão cara à jornalista.