Capa do Charlie Hebdo com charge de Erdogan atiça nova reação exaltada de líder da Turquia

Atualizado em 28 de outubro de 2020 às 14:21

Publicado na RFI

A crise diplomática histórica entre a França e a Turquia é impactada nesta quarta-feira (28) pela publicação do novo número de Charlie Hebdo. A revista satírica traz na capa uma imagem do presidente turco, Recep Tayyp Erdogan, de camiseta e cueca, bebendo cerveja e levantando a saia de uma mulher vestida com o véu islâmico integral. Ancara condenou a charge por “racismo cultural e propagação do ódio” aos muçulmanos, prometendo uma resposta judiciária e diplomática ao caso.

Irreverente como de costume, Charlie Hebdo publicou na noite de terça-feira (27) nas redes sociais uma chamada para sua nova edição semanal, que traz a manchete “Erdogan: na vida privada, ele é muito engraçado”.

No desenho, a figura de Erdogan mostra as nádegas nuas de uma muçulmana de batom vermelho e bandeja na mão, acompanhada da legenda: “Uau, o Profeta!”. A charge é assinada por Alice, jovem desenhista contratada após o atentado ocorrido em 7 de janeiro de 2015 na redação de Charlie. O massacre, reivindicado pela rede terrorista islâmica Al Qaeda, matou oito colaboradores da revista, incluindo Cabu, Wolinski, Charb e Tignous, cartunistas históricos a publicação.

O Ministério Público de Ancara informou que abriu, nesta quarta-feira (28), um inquérito judicial contra os diretores da revista. Em discurso na capital turca, Erdogan referiu-se à publicação do desenho como um “ataque infame” cometido por “canalhas”. Ele disse não ter visto a caricatura em questão. “Minha raiva não é devido ao ataque vil contra minha pessoa, mas aos insultos contra o profeta” Maomé, acrescentou. “Sabemos que o alvo não é a minha pessoa, mas sim os nossos valores”, continuou o presidente turco.

Mais cedo, o diretor de comunicação da presidência turca, Fahrettin Altun, afirmou em um tuíte que a caricatura de Erdogan fazia parte da “agenda antimuçulmana” de Macron. O presidente francês não tem qualquer ligação com a revista. Em seus discursos, ele tem defendido a liberdade de expressão e lembrado que a França é uma república laica que permite sátiras a todas as religiões e correntes políticas.

As relações entre França e Turquia nunca estiveram tão tensas desde o fim da Primeira Guerra Mundial, há mais de um século. No último sábado, o presidente turco deu início a uma escalada de “insultos” [sic, Palácio do Eliseu], dizendo que Macron precisava “se submeter a exames mentais” por promover o “separatismo islâmico”. A chanceler alemã, Angela Merkel, classificou de “difamatórias” e “inaceitáveis” as declarações do líder turco e expressou sua “solidariedade” com Paris.

Erdogan não gostou de Macron ter dito que a França continuaria a publicar caricaturas de Maomé, na sequência do assassinato do professor Samuel Paty, decapitado perto de Paris por ter exibido desenhos do profeta Maomé em uma aula de educação moral e cívica destinada a explicar os princípios da laicidade e da liberdade de expressão, pilares da democracia francesa.

“A crescente islamofobia no Ocidente se tornou um ataque total ao Alcorão e ao profeta”, declarou Erdogan. Além disso, o presidente turco lançou um apelo internacional de boicote aos produtos franceses em países de maioria muçulmana.

Desde o fim de semana, protestos em várias localidades levaram milhares de muçulmanos às ruas, boa parte deles fundamentalistas. Eles queimaram imagens de Macron e prometeram novos ataques contra os interesses franceses.

A União Europeia tem condenado a nova escalada de Erdogan, que busca se posicionar como um grande representante religioso e porta-voz do Oriente Médio.

Irã lança advertência à França

O presidente iraniano, Hassan Rohani, alertou que insultar Maomé pode levar à “violência”. “Insultar o profeta não é um feito. É imoral. Encoraja a violência”, declarou Rohani em um discurso transmitido pela televisão nesta quarta-feira. Rohani também pediu ao Ocidente “que pare de se intrometer nos assuntos internos dos muçulmanos” se “realmente quiser alcançar paz, igualdade, a calma e a segurança em nossas sociedades atuais”.

Diante desta atmosfera deletéria alimentada por Erdogan, o Ministério das Relações Exteriores exorta os franceses a serem cautelosos em países do mundo muçulmano, principalmente onde ocorrem manifestações contra a França.

Hollande defende saída da Turquia da OTAN

Em entrevista à rádio France Info nesta quarta-feira, o ex-presidente socialista François Hollande questionou a presença da Turquia na OTAN. “O comportamento agressivo da Turquia coloca o problema da [sua] presença na Aliança Atlântica”, declarou Hollande. “Esta questão não pode mais ser descartada”, ele insistiu.

Em meio a esse grave atrito entre Paris e Ancara, o clube francês Paris-Saint-Germain (PSG) enfrenta hoje o jovem time de Basaksehir, atual titular do campeonato turco, pela Liga dos Campeões. Erdogan é torcedor do Basaksehir.

A partida será disputada a portas fechadas por causa da Covid-19. Oficialmente, é apenas um encontro esportivo, mas a maioria dos torcedores turcos nacionalistas veem o jogo como um novo duelo entre Erdogan e Macron.