Cármen Lúcia cedeu aos algozes de Lula, que querem fazer dele o Tiradentes do século XXI. Por Joaquim de Carvalho

Atualizado em 7 de março de 2018 às 9:54
Ela

Um dos significados da Justiça com venda nos olhos é que, como a deusa Têmis, deve procurar a luz interior, não o que está aparente.

Só assim pode ser boa conselheira.

A Justiça brasileira, encarnada pela presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Cármen Lúcia, é o oposto deste ideal.

Basta ler os jornais e acompanhar o tom da cobertura da TV para contatar que a prisão de Lula se tornou um obsessão a que Cármen Lúcia cedeu, de maneira explícita, ao declarar a jornalistas e representes de multinacionais com quem se reuniu no início do ano:

“Não creio que um caso específico geraria uma pauta diferente. Isso seria realmente apequenar o Supremo”.

A declaração foi feita durante o jantar no restaurante Piantella, em Brasília, tradicional reduto político, ao afastar a ideia de que colocaria em julgamento uma das ações que tramitam lá para verificar se são constitucionais ou não dois artigos de leis em vigor.

Um deles é o 283 do Código de Processo Penal, que diz:

“Artigo. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória TRANSITADA EM JULGADO, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011)”.

O outro é o artigo 105 da Lei de Execução Penal:

“Artigo 105. TRASITANDO EM JULGADO a sentença que aplicar pena privativa de liberdade, se o réu estiver ou vier a ser preso, o Juiz ordenará a expedição de guia de recolhimento para a execução.”

Se esses artigos são constitucionais, ninguém no Brasil pode ser preso até se esgotarem todos os recursos.

É essa a discussão em pauta, e começou bem antes da condenação de Lula, quando o ministro Teori Zavascki, em fevereiro de 2016, negou habeas corpus para evitar a prisão depois de uma condenação em segunda instância.

O caso não envolvia nenhum político. Era o de um ex-vigia condenado num caso de roubo em Itapecerica da Serra, na Grande São Paulo.

Mas, já naquela época, a advogada dele alertou que a decisão do Supremo foi contaminada pelo ambiente político, e pelas pressões do juiz Sergio Moro, que havia publicado um artigo no jornal O Estado de S. Paulo defendendo a prisão já a partir de sentença de primeira instância (o STF não desceu a tanto).

“Ao que parece, o STF se curvou à opinião pública, pois ela clamava por isso”, disse a advogada, Maria Cláudia de Seixas, que tinha impetrado HC com a certeza de que ganharia, já que este era o entendimento pacífico da corte suprema.

A OAB foi a primeira a protestar. Em abril de 2016, a reportagem de capa da Revista da Caasp (Caixa de Assistência dos Advogados de São Paulo), braço da Ordem em São Paulo, indagava:

“Vigora no Brasil a prevenção de culpa?”

E complementava:

“STF autoriza prisões antes do trânsito em julgado e viola a Constituição.”

Na capa, uma ilustração assinada por Paulo Caruso, em que um juiz rasga ao meio a estátua que simboliza o Judiciário.

A condenação de Lula pelo juiz Sergio Moro só aconteceria um ano e três meses depois que a reportagem, ecoando o sentimento dos profissionais do Direito, foi publicada.

A revista da CAASP, publicada um ano e três meses antes da condenação de Lula

Desde então, a OAB move no Supremo uma ação para saber se ainda vale o princípio constitucional da presunção de inocência — ninguém será preso até sentença condenatória transitada em julgado.

Marco Aurélio Mello, relator de uma dessas ações, já redigiu o seu voto e o encaminhou para o julgamento em plenário.

Segundo Marco Aurélio, ao autorizar a prisão antes de esgotados os recursos, o Supremo rasgou a Constituição.

Mas Cármen Lúcia, pressionada pela Globo, sentou em cima do voto de Marco Aurélio.

Nos bastidores do Supremo, há quem diga que a estratégia é prender Lula, deixá-lo algum tempo na cadeia e só depois votar a ação da OAB ou outra que trate do tema.

Assim, os jornais teriam a imagem de Lula preso e também o desgaste da imagem pessoal que uma prisão desse tipo poderia provocar.

Só que quem não entende de bruxaria não deveria brincar de feiticeiro. O feitiço pode virar contra o bruxo.

Lula preso coroaria a interpretação de que sofre perseguição por parte do Judiciário — e sofre mesmo.

Basta verificar que não existe prova de que ele é dono do tal triplex e, ainda assim, foi condenado em primeira e segunda instância numa velocidade incomum para o Judiciário brasileiro.

Carmen Lúcia deveria deixar seguir o fluxo no normal dos julgamentos do STF. Não houvesse Lula, essa ação já teria sido julgada.

Mas a cabeça de Lula é um troféu que a direita derrotada nas urnas quer. E, por isso, através de Cármen Lúcia, segura o julgamento — cujo resultado, a considerar as manifestações dos ministros, será favorável ao princípio da presunção de inocência e, portanto, favorável a Lula.

Não há como não comparar essa campanha ao que se fez no passado, quando, depois de enforcar Tiradentes, a coroa portuguesa mandou esquartejar seu corpo e exibir as partes ao longo da antiga estrada que ligava Ouro Preto ao Rio de Janeiro.

Não existe pena de morte no Brasil, mas Cármen Lúcia participa de um movimento que guarda semelhanças.

O que a direita derrotada nas urnas quer é dar uma lição a Lula e mostrar às futuras gerações que não terminará bem quem se atrever a lutar por um Brasil independente, soberano e inclusivo.

Tiradentes vive, pela ação dos seus algozes, que estarão sempre por aí.