Carona de Temer a Gilmar pode ser vista como “presente” e implicar suspeição, dizem juristas. Por Marcelo Auler

Atualizado em 16 de janeiro de 2017 às 8:28
Gilmar e Temer desembarcam em Portugal
Gilmar e Temer desembarcam em Portugal

Publicado no Blog de Marcelo Auler.

 

Ao comentar, no último dia 10/01, a viagem que fez no avião presidencial para Lisboa (Portugal), onde passa férias, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), rebateu críticas a esta estranha “carona”. Ele, como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) foi responsável pela reabertura do processo que analisou – e aprovou – as contas da campanha de Dilma Rousseff, na eleição de 2014.

Ao tentar atingir a então presidente acabou levando a reboque o seu vice, hoje presidente Michel Temer que está no cargo graças ao golpe do impeachment. Por ter este processo em andamento, foi criticado ao aceitar a “carona”, mas na entrevista que concedeu a Jorge Bastos Moreno desmereceu aqueles que falam que o processo e a viagem são incompatíveis. Ainda classificou essa discussão de “um assunto menor”:

“Não são (incompatíveis) porque nunca discuti esse tema com o presidente Temer e ele nunca me abordou sobre esse assunto e creio que jamais abordará”, explicou.

Tanto Mendes, jurista experiente, como Temer, reconhecido constitucionalista, porém, podem ter se esquecido de um detalhe importante que desmente tratar-se de “um assunto menor”: o inciso II do artigo 145 da Lei 13,105/2015, mais conhecida como Código de Processo Civil. Ali, com todas as letras está exposto que “há suspeição do juiz que receber presentes de pessoas que tiverem interesse na causa antes ou depois de iniciado o processo”. A pergunta que fica no ar e foi colocada pelo Blog para alguns operadores do Direito é:

Uma viagem a Lisboa, no avião presidencial, é um presente? Há um motivo de suspeição?

A discussão gira, a princípio, em torno da palavra “presentes“.

Segundo o dicionário Houaiss ela significa “objeto doado, ofertado; regalo, mimo, brinde, lembrança” ou ainda, “qualquer coisa que seconcede a alguém; dádiva, dom”.

O termo foi introduzido no novo Código aprovado em 2105. No anterior, Lei no5.869, de 11 de janeiro de 1973, a palavra usada era “dádiva” – “receber dádivas antes ou depois de iniciado o processo”.

Para um tradicional jurista, aposentado da Procuradoria Geral da República, é  tudo uma questão de interpretação.

“A palavra “presentes” não é de técnica jurídica. Usá-la no texto da lei foi uma coisa mal feita. A lei deveria se utilizar dos conceitos juridicamente consagrados – doação, vantagem de qualquer natureza. Mas, “presentes”, por definição, não tem precisão jurídica. Juridicamente, presente só se compara com o futuro e o passado. É de outro tipo de categoria jurídica. Não diz respeito a bens, ou serviços… O Direito Civil tem os seus conceitos, que devem ser aproveitados pelo Código de Processo Civil. Este, não pode criar conceitos novos. Acho que seria bom perguntar o sentido a quem colocou neste texto a palavra “presentes“. Se houvesse uma crítica de técnica jurídica, talvez não passasse”, ironiza.

Ele foge do debate sobre a “carona” para Lisboa. No seu entendimento, é uma questão “indiferente, até porque, o conceito de suspeição ou o impedimento que esteja no Código de Processo Civil ou no Código de Processo Penal, não esgota o conceito fundamental que é constitucional: o da imparcialidade do magistrado.

“Este que é o conceito fundamental, já que a lei ordinária, seja codificada ou não, não pode restringir o conceito fundamental da imparcialidade que se encontra em toda a parte introdutória da própria Constituição. Discutir em detalhes um texto de hierarquia inferior não ilumina o assunto”, diz.

A parcialidade do ministro Mendes, no entendimento deste jurista, está bem exposta nos pedidos de impeachment protocolados no Senado em setembro. Tais pedidos, como narramos nas reportagens Juristas acusam Renan Calheiros e Gilmar Mendes: troca de favores e Por Gilmar Mendes, Renan Calheiros volta à berlinda, foram indeferidos e arquivados liminarmente por ato individual do presidente daquela casa. A decisão de Renan Calheiros, considerado suspeito por responder a processo no STF, deverá ser discutida na Suprema Corte por conta de dois Mandados de Segurança ali impetrados. como narram estas matérias.

Os questionamento feito pelo Blog a diversos operadores do direito – A carona de avião a Lisboa é um presente como previsto no CPC? -, mesmo sob a proteção do OFF, não mereceu resposta de todos. Mas as que chegaram demonstram bem como o assunto gera polêmica, independentemente de posições políticas.

Dentre os procuradores da República consultados, as respostas foram no mesmo sentido, ainda que eles tenham posições políticas divergentes, por exemplo, com relação à Operação Lava Jato. Um limitou-se a dizer: “No caso sim!”. Ou seja, foi um presente.

Já seu colega, defensor da Lava Jato, foi mais crítico: “Claro que sim, ainda que às custas da viúva. Só que ministro do STF no Brasil não está sujeito a regras processualistas e orgânicas, basta ver o quanto o Gilmar já descumpriu a regra da Loman (Lei Orgânica da Magistratura) que proíbe falar de causa alheia, mal de colegas etc..”

A terceira resposta enviada por membro da PGR em São Paulo, crítico aos abusos da Lava Jato, coincide com a dos seus colegas: “Eu acho que foi presente. Vale uma representação ao TSE. Quem faria?”

Já um colega seu do Rio de Janeiro diz que considerar a carona um presente “É frágil porque há sempre o argumento da visita institucional, que estava indo como autoridade“.

Um advogado que milita na Justiça Eleitoral tem pensamento parecido. Mas ele próprio alerta que está com a minoria:

“Respeitando as opiniões em contrário, e pedindo todas as vênias, não vi nada de mau no fato. A independência do magistrado é mostrada nas suas decisões. O fato de o ministro não ter ido ao “funeral” certamente será explicado”.

Depois, acrescentou: “Acho que era um voo fretado. Pago pelo Governo, que ia decolar de qualquer maneira, lotado ou não. Melhor o ministro ter ido assim do que ter comprado uma passagem, em voo normal, e ter pedido depois o reembolso que seria feito com o seu, o meu, o nosso dinheiro. Sinceramente, não vejo o fato como um “presente“. Pelo que entendi, várias personalidades públicas foram no mesmo voo. Não entendo caracterizado um “presente”. Porém, esta é apenas a minha modesta opinião“.

Já um colega seu criminalista, foi curto e direto: “E que “presente”!!!!

Na verdade, o voo foi no avião presidencial. Outro convidado de Temer foi o ex-presidente José Sarney. Embora convidado pelo presidente da República, Gilmar Mendes, mesmo na condição de presidente do TSE não estava em missão oficial. Tanto assim que não houve pagamento de diárias pelo tribunal. A representação do Judiciário brasileiro, caso necessária, caberia à presidente do STF ou alguém por ela designado.

tap preço

Mendes se encontra em férias. Conforme explicou a assessoria do TSE, ele deu plantão como presidente da corte até 31 de dezembro. No mês de janeiro, quem responde pelas emergências é o ministro Napoleão Nunes Maia Filho, que tem assento na corte eleitoral como representante do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Como o próprio Mendes admitiu à Folha de S.Paulo, em entrevista publicada dia 10, ele “estava de férias em Lisboa mas precisou retornar a Brasília para “atender uma questão pessoal” e disse que voltaria a Portugal no domingo (15)”. A carona, portanto, o fez economizar uma passagem aérea.

Se viajasse neste domingo, 15, pela TAP, saindo de São Paulo, Mendes desembolsaria, no mínimo, R$ 5.928.118, na classe econômica. Na primeira classe, pagaria o dobro: R$ 11.963,00 (veja ilustração acima). Pela TAM, a passagem mais em conta sairia por R$ 12.953,77. Na hipótese dele adquirir a passagem com antecedência, poderia viajar pela TAP por R$ 4.118,22 na classe econômica (preço de uma passagem a ser adquirida sábado, dia 14, para o domingo, dia 22). Sendo ou não a “carona” um “presente”, ela lhe proporcionou, sem dúvidas, uma boa economia. 

Na mesma entrevista à Folha, Mendes alegou que “Se fosse para combinar uma coisa espúria, obviamente, pode fazer isso em qualquer lugar. Não precisa ir a Portugal“. E defendeu a necessidade de se “acabar com esse modo de suspeita” sobre a conversa entre agentes do mundo político. Disse que não vê “nenhum tipo de conflito” ao aceitar uma carona do presidente para ir à capital portuguesa”.

Parece que ele esquece daquilo que foi lembrado por uma advogada fluminense que hoje atua em outro estado: não basta apenas ser honesto, é preciso parecer honesto:

“A resposta do ministro confirma que ele não vê problemas em se beneficiar de favores do chefe do Executivo. Como se ele fosse um cidadão acima de qualquer suspeita e que por isso não deve se curvar aos comportamentos éticos e legais que fazem com que a mulher de Cesar não seja apenas honesta, mas também pareça honesta. Esse é um ônus do serviço público. Qualquer que seja. E deve ser observado com mais razão ainda por membros de poder, porque têm que ter autoridade moral para suas funções fiscalizatórias”.

A questão da ética foi muito lembrada. Um desembargador aposentado, no Rio, analisou a questão de forma mais ampla. Partiu do pressuposto de que ele foi para o funeral e que acabou não comparecendo à cerimônia por causa de uma alegada labirintite. Entende que como membro do STF ele poderia ir em caráter individual, mesmo não representando o órgão. Como presidente do TSE, ele representa o órgão mesmo de férias, oficiosamente, já que presença em funeral não é ato administrativo nem judicial. E se o faz em férias, não podia receber diárias.

Michel Temer deu carona a Gilmar Mendes para Portugal, mas o ministro do STF não esteve no funeral de Mário Soares. Passeio? Recorda, ainda, que o presidente da República tem a prerrogativa de levar convidados no avião presidencial. Foram comuns notícias de comitivas de empresários em viagens de presidentes. Com maior razão ele poderia justificar a gentileza ao presidente de qualquer tribunal superior.

Mas, adverte, o que fica de antiético é a viagem em face da relação juiz-réu, como saiu no artigo de Omar Catito Peres, aqui publicado Nota de Falecimento! E acrescenta:

“Em abstrato, dar passagem de avião de graça é “presente”. No caso particular, esse probo ministro é presidente do TSE e membro do STF, pelo que tinha justificativa teórica para comparecer ao funeral. Nesse contexto sempre poderá afirmar que até economizou verba do TSE ou do STF com passagem de avião pegando carona.

O que é censurável é aceitar carona, que é uma gentileza, de alguém que é réu em ação na qual é juiz. Nesse aspecto a justificativa que ele deu, reproduzida acima, não convence.

E moralmente ficou muito discutível o motivo que ele deu para justificar a carona, a ida ao funeral. Isso impediria que se chamasse a viagem de “presente”.  Como não foi ao funeral,  então seria viagem particular, a ser paga do próprio bolso. Mas, soube que ele não foi “por causa de uma crise de labirintite”. E parece que continuou lá mais algum tempo. Como tudo que cerca esse personagem sinistro, é nebuloso e de legalidade questionável”.