Carta a uma mãe preocupada com a filha que anda de bicicleta

Atualizado em 10 de maio de 2013 às 7:59

Coração materno sofre com pedaladas da cria numa cidade tão hostil aos ciclistas como São Paulo.
bike12

O texto abaixo, de Natália Garcia,  foi publicado, originalmente, no site Planeta Sustentável.

“Calma, mãe.

Eu sei que a cada acidente fatal envolvendo uma bicicleta você se desespera. Sei que quando mais um ciclista morre atropelado você se esquece, instantaneamente, de como admira o fato de eu ter escolhido pedalar pela cidade, porque a realidade gela essa ideia romântica diante da minha fragilidade. Eu preciso te confessar que eu também me desespero. Mais do que isso, a cada ciclista que morre eu me sinto em carne viva.

Sempre que saio com minha bicicleta em São Paulo, eu assumo um risco. E sei que você morre de medo desse risco, especialmente em dias como hoje, quando ele fica tão palpável. A diretora Gisela Matta faleceu nessa manhã, vítima de atropelamento por um ônibus. O motorista declarou que só percebeu o acidente ao ouvir “um barulho”. Quando desceu do coletivo, deparou-se com Gisela caída no chão ao lado de sua bicicleta.

Eu sei no que você está pensando, mãe, e você está certa. Podia sim ter sido eu.

Mas aceite, eu não vou parar de pedalar. Não é só por ativismo. Apesar de saber que a bicicleta é uma solução barata que combina mobilidade e saúde, não é apenas a consciência disso que me move a arriscar meu próprio corpo sempre que pedalo (até porque essa não é uma opção que atenda a todos, como o transporte público pode ser). A verdade é que percorrer a cidade de bicicleta é infinitamente mais agradável, rápido e versátil para mim do que qualquer outro meio de transporte.

Eu já te expliquei que não sou cicloativista. Meu trabalho de pesquisa não tem a ver apenas com o uso de bicicletas como meio de transporte, mas com mais opções de mobilidade. Isso inclui andar a pé, de bicicleta, de moto, de transporte público e de carro. Como você bem sabe, tirando a moto, eu frequentemente oscilo entre todos esses modais. E essa sensação da carne viva acontece quando vejo qualquer acidente de trânsito, com pedestres, motos, etc.

Eu sei que isso vai dar um nó na sua cabeça, mãe, mas eu não sou ciclista. Assim como ninguém se referiu à Gisela Matta como ciclista. Ela era a diretora de televisão Gisela Matta, que talvez em seu dia-a-dia ou talvez apenas naquele fatídico domingo, tenha escolhido pedalar.

São Paulo não é para bicicletas, você me diz. Copenhague e Amsterdam, as duas referências mundias de cidades cicláveis, também não eram, eu te respondo. Uma porção de acidentes aconteceram por lá também, até que elas fossem sendo adaptadas ao que uma parte crescente de seus moradores queria. Aqui tem muitas subidas, você insiste. São Francisco, o berço do Critical Mass que inspirou a bicicletada no Brasil, tem muito mais, te explico. É perigoso, precisa de muita coragem, você reluta. Precisa de mais coragem ainda para encarar dirigir um carro, em especial no horário de rush, eu afirmo.

Eu sei que, com toda essa preocupação, você só quer o meu bem, mãe.

Mas se você quer fazer algo por mim, eu te peço duas coisas. A primeira é: pare de dizer que sua filha é ciclista. Você não se refere ao meu irmão, seu filho mais novo, como motorista, não é? Então, eu sou apenas a Natália. Meu principal meio de transporte é uma bicicleta, mas isso não define quem eu sou ou, pior, a que “time” eu pertenço no trânsito. Para mim, aliás, a segregação humana entre modais que brigam entre si por espaços públicos para se locomover pelas ruas é de uma violência sem tamanho. A segunda é: aprenda a me enxergar. E não estou falando metaforicamente. É que fisicamente eu me sinto invisível uma porção de vezes quando pedalo na rua, como a Gisela foi para o motorista de ônibus. Eu sei que o fato de eu pedalar sensibilizou muito teu olhar nas ruas, mas se puder espalhar esse pedido aos seus amigos, já te agradeço muito.

No mais, nos resta amargar mais esse luto. Sem esmorecer.”