Carta pela Democracia “não dá um nome a quem faz a ameaça”, diz Rudá Ricci

Atualizado em 22 de fevereiro de 2023 às 16:40
O sociólogo Rudá Ricci. Reprodução

Publicado originalmente no IHU UNISINOS

Enquanto o presidente da República vociferava contra toda a mobilização em torno da “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito!”, o país era varrido por uma onda de manifestos e atos públicos inspirados na iniciativa da Faculdade de Direito de Universidade de São Paulo – USP. Remontando um ato realizado durante a ditadura militar, quando a Faculdade preparou um manifesto com assinatura de muitos intelectuais e lideranças da sociedade em defesa da democracia em pleno anos de chumbo, a carta preparada em 2022 teve o mesmo objetivo: defender o Estado Democrático de Direito. Mas, com uma diferença: a ameaça não vem mais da repressão e da ditadura, mas do próprio presidente Jair Bolsonaro, que tenta minar a já cambaleante democracia brasileira. O resultado foi mais de um milhão de assinaturas, uma manifestação pública diante da Faculdade e inúmeras outras cartas e atos públicos Brasil afora.

Para analisar as questões de fundo desse ato diante da atual conjuntura nacional, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU ouviu o professor Rudá Ricci. Para ele, o ato é importante, mas é preciso ter sobriedade para apreender seu real tamanho. “A carta revela que segmentos da elite intelectual e empresarial do Brasil se alinham, não necessariamente com o lulismo, mas contra outras ameaças do bolsonarismo. E só, não há mais do que isso”, pontua. Segundo Rudá, “há toda uma certa repercussão na grande imprensa de que isso é uma clara demonstração de oposição. Não é verdade, pelo contrário, esse tipo de manifestação é típico do século XX, quando se tinha um apelo grande. Mas, no século da difusão de informações e dos núcleos comunitaristas, coletivos e virtuais esse documento é mais uma bolha”, acrescenta.

Ainda assim, segundo o professor, “o mais importante da carta é que amarra, com o último parágrafo, a relação do momento atual com a defesa da democracia durante a ditadura militar, o que vai levar ao fim da ditadura. Ou seja, essa narrativa sugere que estamos num momento que exige a defesa da democracia tal como naquele período durante a ditadura militar e que, portanto, essa ameaça é antidemocrática”. Porém, lamenta que “ela [a carta] não cita exatamente, não dá um nome a quem faz a ameaça. Portanto, é um discurso genérico que serve pouco para um embate nas redes sociais”. Rudá Ricci compreende que “se esse manifesto não ‘dá um nome aos bois’ nitidamente, fica mais difícil de você repercutir nas redes como Twitter, Instagram, Facebook”

Rudá Ricci é graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e doutor em Ciências Sociais pela mesma instituição. É diretor geral do Instituto Cultiva, professor do curso de mestrado em Direito e Desenvolvimento Sustentável da Escola Superior Dom Helder Câmara e colunista Político da Band News. É autor de Terra de Ninguém (Ed. Unicamp, 1999), Dicionário da Gestão Democrática (Ed. Autêntica, 2007), Lulismo (Fundação Astrojildo Pereira/Contraponto, 2010) e coautor de A Participação em São Paulo (Ed. Unesp, 2004), entre outros.

Confira a entrevista.

 Qual sua análise quanto ao atual momento da democracia no Brasil? Como chegamos a esse quadro?

Nós temos hoje duas forças políticas nacionais com grande apelo popular, que são o lulismo e o bolsonarismo. O bolsonarismo, na verdade, é mais do que Jair Bolsonaro, assim como o lulismo é mais do que Lula. Mas o fato é que o bolsonarismo é muito mais difuso do que o lulismo. O bolsonarismo tem duas grandes bases que dão consistência a ele, lembrando que ele é fascista de extrema-direita.

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Ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (esquerda) e o atual presidente Jair Bolsonaro (dieita)
Foto: Reprodução

Nós usamos o conceito de extremismo para definir uma força política quando ela nega ou ameaça constantemente a democracia e, quase sempre, com ameaça e uso real da força. É exatamente isso que estamos vivendo, com manifestações de 7 de Setembro contra as instituições, com ataque aos ministros do Supremo Tribunal Federal – STF, ou seja, os poderes independentes do Executivo, que são pilares da república, além de assassinatos, ameaças em manifestações políticas, vandalismo contra carros de juízes que mandam prender ex-ministros do governo Bolsonaro, assassinato de dirigente do PT de Foz do Iguaçu, de ambientalistas, na Amazônia, bombas em eventos como o da Candelária, no Rio de Janeiro, ou drone jogando veneno em manifestantes aguardando Lula em Uberlândia. Ou seja, é uma sequência bem nítida a partir de um comando verbal do presidente da República através de uma frase dele: “nós sabemos o que fazer, vocês sabem o que tem que ser feito”. Ou, ainda, outra frase como: “nada que uma granadinha e um tiro, uma arma, não resolvam”. Isso se chama terrorismo estocástico.

Além dessa organização difusa do Bolsonarismo, não necessariamente de uma classe social estruturada por uma organização, temos também uma base política, aí sim organizada. Nessa base, poderia citar os militares, em especial, no Exército, os comandantes da missão de paz no Haiti. São todos eles bolsonaristas e que vêm do Haiti com o ideário muito nítido do uso da força para coibir o que eles chamam de baderna dos segmentos sociais mais marginalizados do Brasil. Eles retomam uma tese do século XIX chamada haitianismo, a força militar dos Estado controlando as demandas sociais nos setores negros e pobres da população.

O segundo segmento é do empresariado, em especial, o empresariado do setor varejista, das redes varejistas de alimentação e da venda de produtos de consumo básico familiar. O terceiro segmento é o baixo clero do Congresso, ou seja, os deputados que não têm projeto nacional e só pensam em alimentar com verbas e obras a sua base municipal eleitoral. Portanto, os cabos eleitorais deles são os prefeitos.

E, finalmente, o segmento evangélico que nas eleições se aproxima da base que não pensa como a bancada da Bíblia no Congresso, mas que no período da eleição trabalha o discurso da pauta de costumes, em especial de defesa da família, dizendo que lésbicas, feministas etc. conspiram contra o equilíbrio e a paz na família.

Evangélicos
Evangélicos Foto: Masao Goto Filho/AE/VEJA

Esse é o bolsonarismo e nós, então, estamos vivenciando essa lógica bolsonarista do terror e da instalação do pânico e das ameaças constantes que fazem o setor lulista ou antibolsonarista ficar sempre muito apreensivo. Portanto, a situação política no Brasil é de grande apreensão a despeito de hoje o Lula estar com uma vantagem imensa em termos de intenção de votos e de apoio partidário sobre o bolsonarismo. Apesar de os dados revelarem essa vantagem, o clima é de muita apreensão.

O que a ação da organização de uma carta pública em defesa da democracia revela? Por que esse movimento chegou a tal proporção com milhares de assinaturas?

A carta revela que segmentos da elite intelectual e empresarial do Brasil se alinham, não necessariamente com o lulismo, mas contra outras ameaças do bolsonarismo. E só, não há mais do que isso. Há toda uma certa repercussão na grande imprensa de que isso é uma clara demonstração de oposição. Não é verdade, pelo contrário, esse tipo de manifestação é típico do século XX, quando se tinha um apelo grande. Mas, no século da difusão de informações e dos núcleos comunitaristas, coletivos e virtuais esse documento é mais uma bolha, fala de uma bolha.

É importante, mas não tem a importância que tiveram o manifesto dos mineiros, declarações pela volta da democracia, entre outros manifestos depois da II Guerra Mundial até o final do século XX. No Brasil, esses manifestos tiveram um papel muito importante, mas hoje não têm, de maneira alguma, a importância que tinham antes. Isso porque mudou a lógica dos formadores de opinião, que antes eram classe média e essas categorias ilustradas. Hoje, esse não tem mais o peso de formação de opinião que tinha no século XX.

Quais os pontos mais significativos que destacas da “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito!”?

O mais importante da carta é que amarra, com o último parágrafo, a relação do momento atual com a defesa da democracia durante a ditadura militar, o que vai levar ao fim da ditadura. Ou seja, essa narrativa sugere que estamos num momento que exige a defesa da democracia tal como naquele período durante a ditadura militar e que, portanto, essa ameaça é antidemocrática.

O problema é que ela não cita exatamente, não dá um nome a quem faz a ameaça. Portanto, é um discurso genérico que serve pouco para um embate nas redes sociais, que é onde se dá hoje realmente a comunicação pública no Brasil. Já não se dá em manifestos desse tipo. Se esse manifesto não “dá um nome aos bois” nitidamente, fica mais difícil de você repercutir nas redes como Twitter, Instagram, Facebook.

O mais importante do documento, volto a dizer, é esse vínculo histórico com o período do regime militar, ou o fim dele, e a luta da sociedade brasileira, e, destacando o Gofredo da Silva Telles, pela normalidade e pela ordem democrática. Isso que é o mais importante.

Salão Nobre da Faculdade do Largo São Francisco – Crédito Egberto Nogueira/ímã foto galeria

Enquanto acompanhamos todas essas manifestações pela democracia, há um Brasil que não chega a ler, assinar ou participar de debates como o proposto na carta. De que forma podemos envolver e levar essa lufada de ar impregnado de Estado Democrático de Direito a essas pessoas?

Nós dificilmente levaremos esse manifesto para a massa brasileira, dificilmente. Volto a dizer: o conceito de formador de opinião que foi construído principalmente depois da II Guerra Mundial pelos Estados Unidos é a ideia de que a classe média forja formadores de opinião. Isso porque os trabalhadores e os mais pobres ou formavam sua opinião a partir dos profissionais liberais que atendiam essa população – médicos, jornalistas, professores – ou porque a classe média empregava essa população como jardineiros, pequenos negócios, pequenos mercados e assim por diante. Essa ideia de uma correia de transmissão entre a classe média ilustrada, que formava opinião e era naturalmente liberal nessa teoria norte-americana, e a base social mais marginalizada, e que por trabalhar muito é menos ilustrada, não tem tempo nem para se formar direito.

No entanto, essa ideia foi destruída no século XXI. Aqui no Brasil, a partir de 2006, muitas pesquisas vêm revelando que a opinião da massa trabalhadora de pobres se desgarrou totalmente da linha editorial da grande imprensa e da classe média. Elas vão para um lado e os trabalhadores e pobres no Brasil votam no outro lado e decidem sobre outra agenda. Então, a ideia de formadores de opinião tem que, no mínimo, ser reformada e, nesse sentido, não dá para achar que o manifesto vai se popularizar de maneira didática nessas novas formas colegiadas e bolhas que hoje envolvem multidões de maneira fragmentada, em grupos de WhatsApp, em acessos relacionados a YouTube, Instagram, Tik Tok. Essa é uma ideia completamente descabida no século XXI.

Diante dos indicadores de insatisfação e desconfiança da população com o sistema político brasileiro, as atuais mobilizações pela manutenção do Estado Democrático de Direito são suficientes para evitar um golpe?

Não vai ter golpe, não tem motivo algum para se falar em golpe. A questão não é golpe; é aí que está o erro grande de algumas leituras do campo progressista e democrático no Brasil. É essa tortura de ficar o tempo inteiro imaginando uma ação apocalíptica contra a democracia. Não é isso que é ameaça política no Brasil.

A ameaça é o que nós podemos começar a ter através das câmaras de eco, que são as bolhas formadas em coletivos hiperexcitados que fanatizam os participantes, sem qualquer possibilidade de contraditório ou dúvida. .E, também, com a manipulação de algoritmos através do que se chama metapolítica, ou seja: você fala de comportamento, por exemplo, gostos por filmes, vestimenta, entretenimento, e, a partir dessas características de consumo, você inclui questões política de maneira enviesada.

Por exemplo, você ficar trabalhando nos grupos que gostam de sapatos vermelhos, falando das tendências etc., e de repente falar “vocês viram o sapado do candidato tal? Olha como ele não tem bom gosto”. Então, você atrai uma discussão enviesada sobre o político a partir de um tema que não tem nada a ver com a política. É esse tipo de manipulação dos algoritmos, dos perfis de quem está nas redes sociais e as câmaras de eco que criam uma disputa dos valores na sociedade.

Não é exatamente um golpe de Estado ou político, é a disputa dos valores e da hegemonia cultural que está em jogo. É algo muito mais perigoso do que um golpe, porque ele é muito mais sólido. É com essa questão que temos que estar mais atentos daqui por diante.