“A Casa Grande caiu”: por que a USP demorou tanto para adotar cotas. Por Willy Delvalle

Atualizado em 7 de julho de 2017 às 17:23
Manifestação na USP

POR WILLY DELVALLE

“A Casa Grande caiu”. Foi com essa frase que a militante do movimento negro Thatiane Lima Gomes comemorou a decisão do Conselho Universitário da Universidade de São Paulo de adotar cotas pela primeira vez na história da instituição. Considerada uma referência nacional e internacional de ensino, a Universidade de São Paulo sempre foi acusada de ser elitista. E os fatos sempre falaram por si.

Num estado com a maior população negra do país, curiosamente só 18,3% dos que ingressaram na USP em 2015 eram negros, percentual que caiu para 17,2% no ano passado.

Catorze anos se passaram desde que a pioneira UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) adotou as cotas, dando início a um movimento que atingiu todas as instituições de ensino superior federais. No estado de SP, a Unesp foi a primeira, em 2013. A Unicamp, a segunda, em maio deste ano. E a USP, a última. Resistiu até esta semana.

O fato de a universidade ser a única estadual que não havia adotado o sistema de cotas colocava a instituição numa posição “vergonhosa”, na avaliação de Dennis Oliveira, professor de jornalismo na Escola de Comunicação e Artes (ECA). Foi o que levou um grupo a fazer uma manifestação recente em frente à reitoria. Assim, a decisão do Conselho Universitário, que é composto por uma maioria branca, não foi um ato apenas de solidariedade. Engajado no movimento que pressionou a universidade, Oliveira conta que houve suspensão, expulsão e até processos judiciais contra estudantes negros. “Muitos alunos sofreram situações constrangedoras nos seus movimentos de ocupação de sala de aula. Muitos deles estão pagando um preço muito alto”, relata.

O peso da história

Na visão do professor, os movimentos negros tiveram que enfrentar uma instituição muito conservadora. “A USP é um centro de poder”, afirma. Ministros do Supremo Tribunal Federal, chefes de redação de veículos da mídia hegemônica, dirigentes de empresas. “A USP estabelece uma relação muito próxima com esses setores de comando do capital, das instituições partidárias da política. 80% das pesquisas são feitas aqui”, afirma.

Ele defende que essa condição remete à criação da universidade, em 1934, que contou com recursos da elite cafeeira paulista, interessada em recuperar o poder político perdido com o fim da República Velha. Foi assim que a instituição contratou uma série de professores estrangeiros, como o antropólogo Claude Levy-Strauss.

“A USP é racista”, diz Thatiane Lima, mencionada no início da reportagem. Aos 26 anos, está no último semestre da graduação em Engenharia de Materiais, curso no qual só teve uma colega negra. Ela faz parte do Núcleo de Consciência Negra (NCN), “que desde de 1995 pauta a luta por cotas”. Para ela, a dificuldade que durou até esta semana é clara. “Institucionalmente a USP é racista. Estamos falando de uma universidade que tem na sua entradas principal um pé de cana e de café. Ela se escondeu o quanto pôde até hoje, usando de argumentos como mérito para impedir a entrada de negros como alunos”.

Governo

Não bastasse ter que enfrentar o conservadorismo universitário, Dennis Oliveira afirma que as cotas ainda precisaram enfrentar outro obstáculo: “a hegemonia dos setores conservadores, do PSDB, dificulta uma ação de mudança por via do Estado, das instituições que gerem a universidade. O movimento social negro não compreendia esse processo”.

Tanto que, aponta o professor, parte chegou a aceitar a negociação proposta em 2012 pelo governo Alckmin no Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior Público Paulista (PIMESP). O acordo propunha cotas em que os estudantes passassem por um pré-curso de dois anos. Se aprovados ao fim desse período, poderiam entrar na universidade. “Vários movimentos negros aderiram a essa proposta, achando que era possível uma negociação. Dentro da universidade, essa proposta foi bombardeada. Então, a  luta pelas cotas continuou”, observa.

Movimentos sociais

Dennis Oliveira avalia que difícil também foi a própria mobilização. Ele lembra a atuação do professor Fernando Conceição, da Universidade Federal da Bahia, que então fazia doutorado na USP. “A adesão foi muito restrita a alguns movimentos dentro da universidade”, diz.

A dificuldade de contar com a mobilização de fora dos muros da instituição foi constante por anos, explica o professor, pelo fato de haver na sociedade a percepção de que a universidade é elitista. “Não se percebe a USP como pública. A ideia de que tem que se apropriar dela demorou bastante para esses setores (movimentos sociais) poderem compreender. E as cotas são um elemento para isso”, defende. Mesmo assim, ele cita movimentos externos com os quais os coletivos internos puderam contar de forma decisiva: UNEAFRO, Círculo Palmarino, Rede Quilombação.

Na outra ponta

Efrain Willians, negro, 24 anos, não participa de nenhum movimento social. Não sabia que a Universidade de São Paulo havia adotado cotas. Instalador de equipamentos de segurança, mora na zona leste da capital paulista e estuda Direito numa instituição privada da zona norte, onde tem dois colegas negros, numa sala de aproximadamente 40 alunos. Ingressou pelo FIES, programa de financiamento estudantil do governo federal. Foi por esse motivo que diz nem ter tentado o vestibular da FUVEST, que seleciona os alunos da USP. “Pra falar a verdade, nunca me inscrevi. Não tive um interesse antes. Só vim começar a estudar ano passado”, conta.

Para ele, a USP não é uma instituição de elite, mas de pessoas estudiosas, característica que ele acredita não ter “muito”. “Mas me esforço”, diz. Efrain afirma que onde vive não é muito comum ver pessoas que estudam na Universidade de São Paulo, realidade que ele acredita que a adoção de cotas talvez mude. Porém discorda da necessidade desse sistema. “Com um pouquinho de esforço, força de vontade, eles conseguem adentrar na universidade. Sendo assim, não seriam necessárias as cotas”, opina.

Cotas estabelecidas

No Rio, onde as cotas existem desde 2003, Rodrigo Farias, 19 anos, quer estudar na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Pretende fazer Gastronomia. De classe média, vai usar o sistema de cotas no SISU (Sistema de Seleção Unificada), mesmo acreditando não precisar.

“Por estudar no Pedro II, acho que o colégio me dá uma preparação para o ENEM que escolas estaduais e municipais, onde a maioria dos jovens negros estudam, não têm. Porém, eu usaria por forma de segurança”.

O curso, na sua avaliação, não é de elite. “Gastronomia é um curso que todos podem cursar porque comida é universal, todo mundo tem que comer, e pra.alguem comer alguem precisa cozinhar”, diz.

Boas-vindas

Agora aprovadas, o reitor da USP Marco Antonio Zago já fala em problemas. À imprensa, ele disse que a evasão vai requerer mais recursos, propondo que eles venham também do governo federal. “A Universidade de São Paulo está passando por um processo muito forte de sucateamento”, observa Dennis Oliveira.

Salários de professores e funcionários congelados, planos de demissão voluntária, políticas de redução da moradia estudantil, de auxílios e do restaurante universitário. “É uma segunda batalha nossa que a universidade recupere sua capacidade de assistência estudantil e recomposição do quadro funcional”, afirma.

Com vários setores em dificuldade de funcionar à noite por falta de funcionários e praticamente o fechamento da instituição aos fins de semana, com bibliotecas que não abrem, “se a gente for pensar no acolhimento de um aluno trabalhador, de periferia, é necessário que a gente repense isso”.

Silêncio

Procurada pela nossa reportagem, a assessoria de imprensa da USP não comentou os casos de retaliação a estudantes negros.

Também questionamos o PSDB sobre as críticas à dificuldade de aprovação de cotas. O partido não se manifestou.