Caso Assange: relator da ONU denuncia tortura, estupro fabricado e manipulação de provas

Atualizado em 9 de setembro de 2020 às 16:30

PUBLICADO NO SPUTNIKS

Relator especial da ONU sobre Tortura revela pela primeira vez as descobertas chocantes que fez durante as investigações do caso Julian Assange. Tortura, prisão e fraude judicial são a regra em um caso que pode colocar a liberdade de imprensa em risco.

Estupro fabricado e manipulação de provas na Suécia, pressão do Reino Unido sobre a Suécia e tortura psicológica: Nils Melzer, relator especial da ONU para Tortura conta pela primeira vez as descobertas chocantes que fez durante sua investigação sobre o caso Assange.

Em entrevista ao jornal alemão Republik, o representante explica que o caso Assange é fundamental para o seu mandato, que consiste em combater a tortura em todas as suas formas. Para ele, apesar das denúncias de torturas sistemáticas contra o jornalista, quem está sendo perseguido é a vítima, e não os torturadores.

“Assange expôs a tortura, ele próprio foi torturado, e pode vir a ser torturado até a morte se for para os Estados Unidos”, disse Melzer.

Caso seja extraditado para os EUA, Assange pode ser condenado a até 175 anos de prisão.

Caso de Estupro na Suécia

O início da desconstrução da imagem de Assange –considerado por muitos um narcisista, um hacker- começou com as alegações do Estado sueco de que uma mulher o acusa de estupro.

Melzer, que fala sueco fluentemente e conta ter lido todos os documentos relacionados ao processo, faz uma revelação inquietante: não há acusação de estupro contra Assange e a declaração da suposta vítima foi reescrita pela polícia.

“Em agosto de 2010, uma mulher chamada S.W […] foi a uma delegacia de polícia em Estocolmo. Ela relatou ter tido relações sexuais com Julian Assange sem o uso de preservativos. Disse que estava com medo de ter sido infectada com o HIV e queria solicitar que Assange fizesse um teste de detecção da doença […] antes que o interrogatório pudesse ser concluído, ela é informada de que Assange será preso por suspeita de estupro […] Ela se recusa a continuar o interrogatório e vai para casa. S. W não acusou Assange de estupro”, relata.

Mas em poucas horas, o caso já estava na imprensa. De acordo com Melzer, o próprio promotor de justiça vazou o caso a um tablóide sueco, em violação às leis do país, que proíbem a publicação do nome de suspeitos de envolvimento em crime sexual.

Melzer lembra que, naquele contexto, o site fundado por Assange, Wikileaks, havia acabado de publicar, em colaboração com o The New York Times, The Guardian e Spiegel, o chamado “Diário da Guerra do Afeganistão”, um dos maiores vazamentos da história militar dos EUA.

De acordo com o representante especial, a narrativa de que Assange teria fugido da justiça sueca também “não corresponde aos fatos”, uma vez que o jornalista se apresentou voluntariamente na delegacia para prestar esclarecimentos.

Mais tarde, quando Assange tomou ciência de que casos secretos haviam sido abertos contra ele nos EUA, passou a exigir da Suécia garantias de que, caso fosse a Estocolmo prestar depoimento, não seria extraditado para os EUA.

De acordo com Melzer, a preocupação de Assange com o governo da Suécia era justificada, uma vez que o governo sueco já “havia entregue dois requerentes de asilo registrados na Suécia à CIA [agência de inteligência dos EUA] sem nenhum julgamento […] eles foram torturados no aeroporto de Estocolmo”.

Posteriormente, “a Suécia teve que pagar meio milhão de dólares em compensação a cada um deles”, contou.

Caso Chelsea Manning

Melzer lembrou que há amplo interesse de países como Estados Unidos, Inglaterra, França e outras “democracias maduras” no silenciamento de Assange, uma vez que o site fundado pelo jornalista, o Wikileaks, se baseia no princípio de “anti-sigilo”.

“Isso é percebido como uma ameaça fundamental em um mundo no qual o recurso ao sigilo aumentou […] Assange deixou claro que o Estado está preocupado com a supressão de informações importantes sobre corrupção e crime”, declarou.

Ele lembra o caso Chelsea Manning, ex-assessora de inteligência norte-americana que vazou para o Wikileaks vídeo no qual um crime de guerra é cometido por militares norte-americanos.

O vídeo, chamado “Assassinato Colateral”, mostra como soldados dos EUA assassinam várias pessoas em Bagdá, inclusive dois repórteres da agência de notícia Reuters.

“Como consultou jurídico e delegado de longa data do Comitê Internacional da Cruz Vermelha em zonas de guerra, posso lhe dizer: este é sem dúvida um crime de guerra”, asseverou Melzer.

Segundo ele, um Estado de direito poderia, sem dúvidas, investigar Chelsea Manning por quebra de sigilo oficial, uma vez que ela compartilhou o vídeo com um jornalista. “Mas [um Estado de Direito] certamente não perseguiria Assange, porque ele publicou um vídeo de interesse público, em um caso de jornalismo investigativo clássico”.

“A coisa mais assustadora desse caso […] é que o jornalismo se torna espionagem”, alertou Melzer. “O caso é escandaloso e uma declaração de falência do Estado de Direito ocidental. Se Julian Assange éfor condenado, será assinada a sentença de morte para a liberdade de imprensa.”

Assange pode ser condenado a até 175 anos de prisão, o que é “absurdo”, uma vez que os “principais criminosos de guerra no tribunal da Ioguslávia foram condenados a 45 anos”, argumentou o relator especial da ONU.

O que espera Assange nos EUA?

Caso Assange seja extraditado para os EUA, deverá comparecer a um júri na cidade de Alexandria, no Estado norte-americano da Virgínia.

“O local não é conhecidência, já que o júri deve ser selecionado proporcionalmente à população local, e, em Alexandria, 85% da população trabalha para a comunidade de segurança nacional, ou seja, para CIA, NSA, Departamento de Defesa e Departamento de Estado dos EUA”, explicou.

Para Melzer, indivíduos acusados de violar a segurança nacional, nessas condições, teriam poucas chances de ter um julgamento imparcial.

“Os procedimentos são sempre conduzidos pelo mesmo juiz, a portas fechadas, com base em evidências secretas”, detalhou.

O relator lembrou que sua intenção não é defender Assange pessoalmente, mas sim garantir o devido processo legal.

“Não estou dizendo que Julian Assange é um anjo, tampouco um herói. Mas não precisa ser nenhum dos dois. Estamos falando de direitos humanos e não de anjos ou heróis. Assange é um ser humano, ele tem o direito de se defender e de ser tratado com humanidade”, declarou.

O relator especial da ONU denunciou reiteradamente maus tratos a Assange na prisão em que está encarcerado, em Londres, no Reino Unido e afirmou que o jornalista apresenta traços de tortura psicológica.

Em abril de 2019, o Equador suspendeu o status do ativista, que foi preso pela Polícia britânica, que o acusa de não comparecer perante o juiz durante liberdade sob fiança.

Logo após a prisão do jornalista, em maio de 2019, o governo dos EUA apresentou novas acusações contra Assange, incluindo a violação de Ato sobre Espionagem e vazamento de informações secretas.