
Os constantes ataques e ameaças contra o padre Júlio Lancellotti, que coordena a Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo – organização de amparo às pessoas em situação de rua -, joga holofotes sobre um dos ícones da Igreja Católica no país, mas chama a atenção para as chantagens, coações e riscos, e desde o governo Bolsonaro, até ameaças políticas, que colocam em risco a vida de parte dos cerca de 30 mil padres brasileiros.
Especialmente aqueles ligados às chamadas Pastorais Sociais, como a Pastoral da Terra, da Criança, da Mulher Marginalizada, Carcerária, e, no caso do padre Lancellotti, a Pastoral de Rua, uma ação pastoral da Arquidiocese de São Paulo na Cracolândia. Pegando apenas os últimos anos, multiplicam-se os casos de violência contra sacerdotes, muitos sem solução.
“Júlio já sofreu todo tipo de ataques, assim como aconteceu a Jesus, acusado de endemoniado, louco, blasfemo, subversivo e herege. Destemido, o pastor não teme defender o povo da rua dos abusos policiais, acolhê-lo em sua igreja, denunciar as obras públicas que visam a impedir que se possa buscar abrigo sob viadutos ou em parques. Ele mereceria, caso existisse, o Prêmio Nobel da Solidariedade. E todo o nosso apoio”, diz Frei Betto. Infelizmente, embora icônico, padre Júlio Lancellotti não é uma exceção, pontua fonte da Igreja, embora a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) tenha se calado sobre isso.
Em novembro, o padre José Aparecido Bilha foi encontrado morto na casa paroquial em Guaíra, com um corte profundo na garganta. Lotado na Paróquia Nossa Senhora Aparecida, o clérigo vinha declarando voto em Lula em seus sermões e passou a ser ameaçado e intimidado pelas redes.

Hoje bispo de Livramento de Nossa Senhora, na Bahia, dom Vicente de Paula Ferreira colecionou ameaças de morte quando esteve à frente da Comissão de Ecologia Integral e Mineração da CNBB. Ferreira batia forte na Vale e nas mineradoras que escavam as montanhas de Minas, caso do local da tragédia ambiental de Brumadinho. Dom Francisco Cota de Oliveira, eu substituto, seguirá o mesmo calvário.
Em 2019, o padre Ticão, líder comunitário na zona leste de SP, passou a ser alvo de uma série de ameaças de morte desde a realização da Semana da Juventude, na Paróquia São Francisco de Assis, em Ermelino Matarazzo. Ticão é conhecido pela defesa do uso da cannabis para fins medicinais. Bilhetes fixados no seu carro diziam: “Cuidado! Os anticristos morreram na fogueira”.
Falecido há um ano, de infarto, na Irlanda, o padre Jaime Crowe, presidente da ONG Sociedade Santos Mártires, celebrou, na Paróquia Santos Mártires, no Jardim Ângela, zona sul de São Paulo, centenas de missas de 7º dia pra mães perderam filhos, mortos pela mortos violência crescente do estado. Nesse período, perdeu a conta das ameaças. Deixou seu legado. Hoje, cerca de 10 mil pessoas são beneficiadas pelos muitos programas oferecidos pela organização, que incluem creches e atendimento psicológico para mulheres vítimas de violência.
Há dois meses, o bispo dom Ailton Menegussi e quatro padres foram ameaçados de morte na cidade de Tauá, no interior do Ceará, onde não conseguem entrar para celebrar missas e eventos católicos. As ameaças teriam sido feitas por familiares de um ex-seminarista. Em maio, em Goiânia, o padre Josinaldo Filomeno da Silva foi ameaçado enquanto celebrava a missa na Paróquia Sagrados Estigmas de Nosso Senhor Jesus Cristo. O homem seria marido de mulher que fazia trabalho voluntário na igreja.
Em outubro de 2020, a Guarda Municipal de Conde, na Paraíba, conduziu coercitivamente o padre Luciano Lustosa até a delegacia de polícia. Por quê? Porque ele pintou de marrom a cruz da própria paróquia, depois que a prefeitura a tinha pintado de azul. Fazia três meses, aliás, que o pároco solicitava a restauração da pintura. A Arquidiocese da Paraíba divulgou nota questionando a alegação de que o padre teria cometido “crime de desobediência”.
Também na Paraíba, na paróquia de Santa Teresinha, na capital João Pessoa, um padre, José Gilmar, foi sequestrado e levado para um cativeiro. Queriam o dinheiro da paróquia. Mesmo debilitado, o padre foi encontro. Já em Manhumirim (MG), outro ataque a um sacerdote, Adriano da Silva Bastos, acabou de modo brutal. Acionada para buscar o padre desaparecido, a polícia encontrou o seu corpo incinerado e com sinais de violência covarde. O assassino era um traficante local.

Chamou a atenção, no caso do padre Lancelotti, o silêncio conveniente de entidades. A sempre operante CNBB, a Renovação Carismática Católica e outras fraternidades, como a Toca de Assis, silenciaram. Apenas a Arquidiocese de São Paulo se pronunciou “perplexa” com a proposta da CPI. Organizações abaixo da hierarquia, como coletivos, mostraram uma cisão: conselhos, pastorais e movimentos da Igreja, como a Comissão Brasileira Justiça e Paz (CBJP) e o GT Compromisso Profético e Social do Conselho Missionário Nacional (Comina), divulgaram nota públicas de apoio e solidariedade ao padre Júlio Lancellotti.
A Pastoral Carcerária Nacional manifestou seu apoio e solidariedade ao padre Júlio Lancellotti. Nas redes sociais, a CNBB tem sido cobrada para defender o pároco diante da uma ofensiva da direita. O último twitter da CNBB foi contra a iniciativa do Governo Federal de flexibilização do aborto. O site da CNBB ressalta a Campanha Pequenos Reis Magos. “Por que a Igreja tá parada, assistindo todas as insinuações contra o padre?”, questionou um usuário do X, antigo Twitter.
Há também questionamentos sobre o silêncio de ícones católicos. Demorou, mas o padre Fabio de Melo, o “Alok de Aparecida”, se pronunciou, depois de ser cobrado nas redes sociais. Seu tuíte foi meia bomba: “Neste momento, peço que Deus o fortaleça, que o conduza, e que tudo se esclareça o mais rápido possível”, afirmou. Finalmente, outro sacerdote pop, padre Marcelo Rossi, se manifestou, igualmente de forma dúbia. “Quando estiver no calor da raiva, prefira ficar em silêncio. Se as suas palavras forem fofocas, escolha ficar em silêncio. Se você só vê defeito nas coisas ou pessoas, fique em silêncio. Se você não ouviu os dois lados da história, fique em silêncio”, escreveu.

O veneno inoculado contra Lancelotti pelo mínimo vereador Rubinho Nunes (União Brasil), ex-integrante do Movimento Brasil Livre (MBL), ao tentar abrir uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para supostamente investigar “ONGs que financiem a pobreza” nas áreas miseráveis de São Paulo, quer, de fato, implodir entidades que atuam especialmente na chamada Cracolândia, no Centro de São Paulo — como o movimento A Craco Resiste, de Lancelotti.
Vários vereadores, que perceberam o golpe de Rubinho, transformando um pedido de CPI das ONGs na CPI da Batina, retiraram suas assinaturas, exaurindo a chance dessa excrescência ir adiante. A extrema-direita, que já declarou guerra ao Papa Francisco, quer colecionar cabeças de padres que fazem o que Cristo fazia — o que é imperdoável para eles.
Uma coisa é certa: não vão parar no padre Júlio.