Caso Miguel: se fosse o filho da patroa, a empregada estaria presa ou morta. Por Nathalí

Atualizado em 26 de julho de 2022 às 16:44
Sari Corte Real e menino Miguel – Foto: Reprodução

Comoção social é, na maioria das vezes, uma coisa meio inútil, porque se espalha como fogo no momento em que o absurdo se apresenta, mas sempre morre em cinzas quando a poeira baixa.

É com isso que gente como Sarí Corte Real conta. Não me diga que você também esqueceu?

Estamos falando da mulher branca condenada a oito anos e seis meses de prisão por abandono de incapaz que resultou na morte do menino negro Miguel Otávio de Santana, de cinco anos, ou, para Sarí, o filho da empregada, que morreu ao ser orientado pela sinhá a subir sozinho o elevador, e acabou caindo da sacada de um prédio de luxo em Recife.

A mulher não podia acompanhá-lo porque estava ocupada fazendo as unhas – eu me lembro muito bem desse detalhe, porque foi o mais sórdido nesse episódio asqueroso.

Se fosse o filho branco de uma de suas amigas da alta sociedade, será que teria sido orientado a subir sozinho? Muito certamente não.

Mas o menino era filho de Mirtes Santana, a empregada. As câmeras de segurança mostraram o momento em que Sarí colocou a criança no elevador e apertou o botão do nono andar, despachando-o à própria sorte para que procurasse sua mãe, que até hoje – em prantos – procura pelo filho.

À época, em 2020, a comoção social foi absoluta. Não se pôde, por conta disso, abafar o caso, mesmo sabendo-se que a sinhá em questão era, para além de branca, ex primeira-dama de Tamandaré-PE, rica e bem-relacionada.

Ela foi processada e condenada, mas daí a cumprir a pena, são outros quinhentos.

A prisão da condenada foi negada pelo juiz Edmilson Cruz Júnior, e ela permanecerá solta até o trânsito em julgado da sentença de condenação – isto é, quando não houver mais qualquer possibilidade de recurso.

Trocando em miúdos, a justiça de Pernambuco permitirá que esta mulher viva por anos, quem sabe décadas, sem sofrer qualquer consequência pelo descaso que resultou na morte de uma criança preta, porque essa é a morosidade da justiça no Brasil – morosidade esta que se faz ainda maior quando a intenção é justamente protelar o processo para proteger alguém influente.

Pode ser que Sarí Corte Real jamais chegue a cumprir essa pena, ou que, daqui a oito ou dez anos, quando do trânsito em julgado da sentença, ninguém mais se lembre de Miguel – ou ninguém além da sua mãe.

Enquanto isso, milhões de pretos estão encarcerados em prisões preventivas sem fundamento, sem terem sequer participado de uma primeira audiência, sem saberem sequer qual é a acusação que pesa contra eles – e isso não é força de expressão ou argumento vazio, são dados reais que refletem que o sistema prisional brasileiro é uma máquina de moer corpos negros.

O que se quer dizer quando se diz que “não há elementos para que se determine a prisão preventiva da condenada” é, basicamente, “nós estamos aplicando a lei friamente porque se trata de uma mulher branca e influente”, porque, quando se trata de corpos negros, não há qualquer presunção de inocência: o preto é culpado até que se prove o contrário.

Eis a função primordial do Estado de Direito: genocídio de negros e proteção aos brancos.