
Neste fim de semana, num misto de autoflagelação e crueldade contra mim mesmo, decidi assistir a alguns vídeos do recém-assassinado Charlie Kirk. Do que vi e ouvi, mesmo que esgotasse todos os adjetivos pejorativos do Aurélio, mesmo que os dispusesse em fila indiana, um a um, como cadáveres num cortejo malcheiroso, ainda assim a enumeração seria insuficiente para descrever sua hedionda e repulsiva figura. Sua performance, em essência, é a maldade humana transformada em espetáculo, a perversão condensada na figura de um influenciador fascista típico.
E, no entanto, mesmo diante de alguém tão repugnante, não encontro motivo para celebrar sua morte. Por respeito a mim mesmo, e também por uma réstia de humanidade que não deve ser abandonada, não consigo me alinhar aos que vibram com o fim de Kirk.
Penso que, mesmo o mais vil dos homens, continua sendo humano — e é justamente esse resquício de humanidade que me impede de participar da festa macabra.
Além da dimensão humanitária, há pelo menos três outros motivos para não comemorar.
O primeiro, o mais elementar, é que ninguém possui legitimidade para decidir sobre a vida ou a morte de outrem. Assassinato é assassinato, em qualquer latitude, regime ou época, e permanece crime previsto em todos os códigos penais mundo afora. Quando essa regra simples é violada, abre-se o terreno fértil dos arbítrios — que, como sabemos, sempre recaem sobre os mais vulneráveis, raramente sobre os Kirk do mundo.
O segundo motivo tem raízes históricas. O capital e suas engrenagens de proteção — polícia, tribunais, aparato militar — sempre se reservaram o direito de matar, mas raramente toleraram que a morte alcançasse seus próprios: capitalistas, administradores ou zelosos e, por vezes, inocentes defensores. Quando isso ocorre, a reação costuma vir tingida de fúria vingativa.
A experiência latino-americana é eloquente: Argentina, Brasil e Uruguai ainda buscam seus desaparecidos. A Europa, que conheceu tragédias semelhantes sob as ditaduras de Portugal, Espanha e Grécia, ainda hoje é violentada pelo fascismo, inclusive com a representação parlamentar de partidos neonazistas como Chega, Vox e Aurora Dourada.
Em todos esses casos, a resposta estatal foi invariavelmente brutal quando os interesses do capital se viram arranhados pela rebeldia progressista (nem é preciso chamar de socialista). O equilíbrio dessa balança nunca existiu: a violência estatal recai, sem hesitação, sobre os que ousam dar algum sopro de humanidade ao capitalismo.
O terceiro motivo é a armadilha da ingenuidade. Houve quem comemorasse a morte de Kirk porque Tyler Robinson, o assassino confesso, teria sido apresentado como militante antifascista, que gravara em uma bala “tome essa, fascista” e, em outra, “bella ciao”.
Mas quem garante que tais frases realmente existam? O FBI, sob influência trumpista? O porta-voz do caso, um governador igualmente trumpista, que, não sem cinismo, apressou-se em acrescentar que esperava que o assassino “não fosse um de nós”? Se isso não desperta desconfiança, nada mais o fará.
A imprensa estadunidense, por sua vez, limitou-se a cumprir o usual bovino rito do “jornalismo declaratório”. Simplesmente repetiu a versão oficial, sem investigação independente ou perícia capaz de confirmar que fora o assassino quem escrevera tais palavras. Nós, brasileiros, que atravessamos a Lava Jato e assistimos à manipulação midiática sendo usada para legitimar perseguições, sabemos quão insensato é depositar fé em narrativas oficiais.

Confiar no governador trumpista de Utah equivale a conceder crédito às palavras de Sergio Moro — um exercício de credulidade acéfala, tão marcado pela não-cognição quanto pela inteligência ostensivamente exibida da deputada bolsofascista Caroline de Toni, no deliciosamente famigerado episódio das caravelas, no entrevero com o professor José Geraldo de Souza Júnior em uma comissão da Câmara, onde a erudição da catarinense naufragou elegantemente em sua própria desinteligência histórica e política.
O que se sabe de concreto, no entanto, é que o assassino é branco, filho de vice-xerife, originário de uma família mórmon. Nascido e criado em Utah, foi educado num ambiente onde a tríade família, pátria e armas é quase um mandamento religioso. A menos que tenha passado por uma inesperada conversão política, ele é a expressão típica do fascista estadunidense.
E aqui chegamos ao resultado mais perverso dessa comemoração precipitada. O fascismo, mesmo sendo uma máquina de morte, possui a habilidade curiosa de se vitimizar. Transforma os cadáveres de seus próprios em bandeiras de guerra.
Nos Estados Unidos e no Brasil, dois epicentros atuais dessa ideologia, o que se viu após a morte de Kirk foi exatamente isso: discursos de ódio renovados, denúncias caluniosas, ameaças explícitas e deduragem contra progressistas.
O sangue de Kirk, reciclado e embalado em retórica violenta, converteu-se em combustível explosivo para o rancor fascista e sua incessante proclamação de morte aos não-seus.
A comemoração da morte, portanto, não apenas erra de alvo, como segue fielmente o roteiro que o fascismo mais aprecia. Dá-lhe mártires, confere-lhe a aura da injustiça, permite-lhe posar de vítima enquanto prossegue como algoz.
Celebrar a execução de Kirk é ignorar que o Estado repressivo, quando provocado, não hesita em estender seu braço forte e violento contra os insurgentes. E, como a história demonstra, a reação jamais é proporcional: é desmedida, cruel, brutal. É, sobretudo, assassina.
A exemplificar, notícias de hoje indicam que o governo Trump, após o assassinato de Kirk, intensificou a violência estatal, enviando tropas da Guarda Nacional a cidades governadas por democratas e de maioria negra e latina.
De resto, se há algo a lamentar no episódio, além da própria morte, é a facilidade com que podemos nos deixar conduzir pela narrativa oficial e pela tentação de celebrar o inaceitável. A dignidade humana, mesmo quando encarnada em figuras desprezíveis, não é descartável.
Perder isso de vista é fazer exatamente o que o fascismo deseja. É abrir caminho para a normalização da violência, sempre a serviço do capital, sempre contra aqueles que ousam contestá-lo.