Chats secretos da Lava Jato: anulação do processo de Lula é a única saída para restabelecer a justiça. Por Joaquim de Carvalho

Atualizado em 9 de junho de 2019 às 22:07
Dallagnol e Moro

No excepcional furo de reportagem do The Intercept sobre as conversas por aplicativo entre Sergio Moro e Deltan Dallagnol e deste com os demais procuradores, os jornalistas Rafael Moro Martins, Alexandre de Santi e Glenn Greenwald escrevem que a conduta do então juiz violou o Código de Ética da Magistratura, que determina:

“O magistrado imparcial é aquele que busca nas provas a verdade dos fatos, com objetividade e fundamento, mantendo ao longo de todo o processo uma distância equivalente das partes, e evita todo o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito”. (…) “No desempenho de sua atividade, cumpre dispensar às partes igualdade de tratamento, vedada qualquer espécie de injustificada discriminação.”

Na verdade, Sergio Moro violou, em princípio, o Código de Processo Penal, a Constituição e a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Em síntese, são textos que garantem que todo cidadão tem direito a um julgamento justo, conduzido por juízes imparciais.

Ao ler as conversas, não é preciso ser jurista para chegar à conclusão de que Moro não se comportou como juiz nos casos da Lava Jato e, especialmente, nos processos envolvendo Lula. Ele foi parte da acusação, a parte mais ativa. Chegou a dar dura em Deltan Dallagnol, o coordenador da Lava Jato, como se fosse chefe dele:

“Que história é essa que vcs querem adiar? Vcs devem estar brincando” (…) Não tem nulidade nenhuma, é só um monte de bobagem”, afirmou, a respeito da possibilidade do Ministério Público solicitar que o primeiro depoimento de Lula a Moro fosse postergado.

Deltan Dallagnol respondeu:

“Passei o dia fora ontem. Defenderemos manter. Falaremos com Nivaldo”.

Nivaldo Bononi era o magistrado que substituía o relator da Lava Jato no Tribunal Regional Federal da 4a. Região.

Em outro diálogo, Dallagnol combinou com Moro como deve ser a decisão dele.

“Caro, foram pedidas oitivas na fase do 402, mas fique à vontade, desnecessário dizer, para indeferir. De nossa parte, foi um pedido mais por estratégia”

Moro concordou:

“Blz, tranquilo, ainda estou preparando a decisão mas a tendência é indeferir mesmo”

Num dos diálogos mais escandalosos, Deltan Dallagnol admite a Sergio Moro a fragilidade da denúncia apresentada contra Lula no caso do triplex, já dá como certo o recebimento da denúncia, e sugere ao juiz o que deve observar. É um jogo combinado.

“Creio que isso vai passar só quando eventualmente a página for virada para a próxima fase, com o eventual recebimento da denúncia, em que talvez caiba, se entender pertinente no contexto da decisão, abordar esses pontos”, afirmou.

Moro tranquilizou o coordenador da Lava Jato em Curitiba:

“Definitivamente, as críticas à exposição de vcs são desproporcionais. Siga firme.”

Moro sugeriu a inversão de operações planejadas, o que mostra que tomava conhecimento antecipado das decisões do Ministério Público Federal, e recomendou o treinamento de uma procuradora para tornar mais eficiente sua performance nas audiências, para inquirir melhor os réus.

Enfim, seu comportamento é do chefe da acusação.

A Lava Jato reagiu à divulgação das notícias, com o argumento de que houve afronta ao Estado e um grave ilícito, atribuindo o vazamento a um hacker que invadiu os aparelhos celulares dos procuradores. Também criticou a invasão da intimidade deles.

“A violação criminosa das comunicações de autoridades constituídas é uma grave e ilícita afronta ao Estado e se coaduna com o objetivo de obstar a continuidade da Operação, expondo a vida dos seus membros e famílias a riscos pessoais. Ninguém deve ter sua intimidade – seja física, seja moral – devassada ou divulgada contra a sua vontade. Além disso, na medida em que expõe rotinas e detalhes da vida pessoal, a ação ilegal cria enormes riscos à intimidade e à segurança dos integrantes da força-tarefa, de seus familiares e amigos”, diz a nota.

Ora, se isso vale para os procuradores, valeria também para Marisa Letícia, que teve suas conversas pessoais vazadas por Moro, e também para Dilma Rousseff, exposta em rede nacional quando era presidente da república, num diálogo com Lula e que, diga-se, não revelava nada de ilegal ou ilícito, ao contrário do que sugerem as conversas reveladas pelo The Intercept.

Moro tem sustentado desde então que o cidadão tem direito de saber o que fazem as mais autoridades do Estado. Se vale para Dilma, vale também para os procuradores, e para ele também.

As conversas revelam uma afronta ao princípio da imparcialidade da Justiça.

O Código de Processo Penal estabelece, no artigo 254, que o juiz “dar-se-á por suspeito, e, se não o fizer, poderá ser recusado por qualquer das partes:

IV – se tiver aconselhado qualquer das partes.

O Ministério Público Federal é parte no processo. Tanto quanto o advogado.

O Código de Processo Penal assegura também, em seu artigo 564, que a nulidade ocorrerá nos seguintes casos:  “por incompetência, suspeição ou suborno do juiz.”

A suspeição de Moro é flagrante, mas até agora ela tem sido negada pelas cortes superiores. Há, no entanto, um HC no Supremo Tribunal Federal que pede a nulidade do processo do triplex por conta das inúmeras demonstrações de parcialidade de Moro.

Esse HC começou a ser julgado em dezembro do ano passado, mas está parado desde que Gilmar Mendes pediu vistas da ação e ainda não o devolveu.

Os ministros Édson Fachin, relator da Lava Jato, e Cármem Lúcia votaram contra o HC. O relator considerou que Moro usou “procedimentos heterodoxos”, mas externou o entendimento de que não havia provas de que a intenção do ex-juiz era escusa, isto é, que ele já tinha intenção de condenar Lula antes mesmo de analisar as provas.

“Ninguém está acima da lei, nem da Constituição. Nem gestores, nem parlamentares, nem juízes. Todos a que a Constituição atribuiu o poder de aplicá-la lhe devem estrita observância e devem dar o exemplo de respeito e obediência da ordem normativa. Não deixo de anotar que houve procedimentos heterodoxos, ainda que para atingir finalidade legítima, que não devem ser beneplacitados, exigindo, contudo, na via estreita do habeas corpus, mais que indícios ou narrativas para que configurem causas aptas a viciar a prestação jurisdicional”, disse.

Além de Gilmar Mendes, ainda votarão Celso de Mello e Ricardo Lewandowski. O placar de 3 a 2 já seria suficiente para devolver a liberdade a Lula e reiniciar o processo do triplex, com juiz e procuradores idôneos.

O placar, no entanto, poderia ser ainda mais dilatado se Cármem Lúcia e Fachin reavaliarem seu voto, diante das revelações dos diálogos.

É fato que magistrados devem se restringir ao que aparece nos autos, e os chats não estão lá, mas naturalmente informações que se tornam públicas devem ser levadas em consideração pelos julgadores.

Ainda assim, nem haveria necessidade disso. A parcialidade de Moro se tornou cristalina quando ele deixou a magistratura para se tornar ministro de Jair Bolsonaro, o político que mais se beneficiou da condenação de Lula.

Com Lula candidato, certamente Bolsonaro não se elegeria, considerando todas as pesquisas da época.

Se Fachin e Cármem Lúcia não fizerem isso, passarão para a história como co-autores de uma farsa histórica, com graves repercussões políticas.

“Ninguém pode ter dúvida de que os processos contra o ex-Presidente Lula estão corrompidos pelo que há de mais grave em termos de violações a garantias fundamentais e à negativa de direitos. O restabelecimento da liberdade plena de Lula é urgente, assim como o reconhecimento mais pleno e cabal de que ele não praticou qualquer crime e que é vítima de “lawfare”, que é a manipulação das leis e dos procedimentos jurídicos para fins de perseguição política”, diz a nota divulgada esta noite pelos advogados do ex-presidente.