Chile: Entre o fim da Constituição ditatorial e o medo de uma falsa transição. Por Patrícia Faermann

Atualizado em 22 de novembro de 2019 às 13:09
Manifestante ergue a bandeira do Chile em protesto na cidade litorânea de Valparaíso Foto: JAVIER TORRES/AFP/21-10-2019

Publicado originalmente no CGN:

POR PATRÍCIA FAERMANN

Foram 27 dias de manifestações consecutivas históricas, em um Chile que diziam que em 30 anos dormia. “O Chile acordou” de outubro e novembro é um movimento que pede uma mudança estrutural do modelo neoliberal implementado na ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990) e que mantinha o sistema vigente pelas raízes da própria Constituição, não substituída no retorno à democracia.

Enquanto diariamente os rastros de sangue da dura repressão policial do governo de Sebastián Piñera aumentavam os números de mortos, feridos, presos, torturados, violados sexualmente e nos que ficaram parcial ou completamente cegos pelas armas disparadas contra os rostos dos manifestantes – dados que não têm precedentes na história mundial, foi a estagnação econômica que o momento crítico gerou no país que pressionou o governo a ceder, contrariado, a apresentar uma resposta satisfatória à população, até se chegar a um acordo para uma nova Constituição.

Após uma semana de mobilizações, a primeira reação tardia do mandatário foi de anunciar reformas pontuais. Uma “agenda social” proposta por Sebastián Piñera elencava pequenos estímulos a setores como saúde, aposentadoria e salários que não modificavam a estrutura do problema e, ao contrário, foram interpretados como um financiamento do Estado aos hoje principais detentores de poder no país, os grandes conglomerados econômicos.

O anúncio, no dia 22 de outubro, não calou as vozes das ruas que seguiram mais mobilizadas, a cada dia. Quando os números de mortos chegaram a 15 pessoas confirmadas, 269 feridos com números ainda inconsistentes e mais de 1.800 presos sob suspeita de perseguição policial, sob toque de recolher e Estado de Emergência, o silêncio permaneceu e as novas respostas do governo era a maior repressão nas ruas.

Apesar da retirada do “Estado de Exceção” uma semana depois, a polícia armada e as forças de segurança especial do país mantiveram as violações a direitos humanos. Foi quando a proposta do mandatário avançou para um “possível Congresso Constituinte”, que é a mudança da Carta, mas decidida pelos parlamentares de maioria governista.

Duas cúpulas internacionais que elevavam Piñera a protagonista da região, a APEC (Cooperação Econômica Ásia-Pacífico) e a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas COP-25, tiveram que ser canceladas, e a repercussão mundial alarmou os parceiros investidores, que nestes 30 anos conquistaram significativa representatividade no Produto Interno Bruto nacional graças às privatizações e à abertura econômica, fazendo a Bolsa de Santiago aprofundar perdas.

A capitalização do mercado perdeu mais de US$ 27 milhões de dólares, o pior registro de ações do mundo na tarde desta quinta-feira (14), e as ações chilenas sofreram um colapso de 2,9%, a segunda maior queda desde o colapso social. A Bolsa de Santiago registrava uma queda de 12,5% desde o início dos protestos, além do pior índice da moeda em 17 anos, obrigando o Banco Central a injetar 4 milhões de dólares para frear a depreciação.

Foi nesta semana, a quarta ininterrupta dos protestos, que dois gestos do mandatário foram anunciados: o primeiro, nesta terça-feira (12), horas após a polícia chilena reagir repressivamente com novos feridos e presos, em cenas que foram registradas pelo GGN, o presidente convocava reforço policial nas ruas, com aposentados e policiais afastados. Aos parlamentares, Sebastián Piñera chamava “por paz, justiça e nova Constituição”.

A opção do “Congresso Constituinte” não foi completamente eliminada da mesa do Executivo. Mas atendendo às petições dos milhares nas ruas, os parlamentares começaram a estudar a alteração da Carta Magna da ditadura por uma nova. Com novas mobilizações convocadas para hoje, sendo chamada de a “Maior Marcha do Chile”, como tradicionalmente vêm ocorrendo todas as sextas-feiras, a Câmara decidiu não fechar os trabalhos desta quinta até ter em mãos a proposta de uma saída para a crise.

Uma medida alternativa à Assembleia era a carta principal do governo desde o início desta semana. A proposta significava que se o Chile criasse uma nova Constituição, seria feita pelo Congresso, que hoje detém maioria governista. O rechaço da população impulsionou os parlamentares a oferecerem maiores opções e, na noite desta segunda (11), os deputados da Comissão da Constituição aprovaram, por votação apertada (de 7 votos contra 6), a possibilidade de um plebiscito de entrada, ou seja, que a população decida se quer um processo constituinte, ou não, e como.

Uma longa jornada de negociações nesta quinta atravessou a madrugada até o esperado anúncio histórico, que se deu por volta das 2h30 desta noite. Horas antes, os líderes dos partidos adiantavam que o acordo para uma nova Carta Magna iria incluir um plebiscito para a população decidir entre uma Assembleia Constituinte, eleita completamente pelos cidadãos, ou mista, com a participação do Congresso.

Ao primeiro, os congressistas denominaram Convenção Constituinte, o que mais se assemelharia a uma Assembleia, com algumas regras que favorecem o bloqueio de medidas que não contemplem a adesão de 2/3 dos membros da Constituinte. Mas é a segunda opção que será dada aos chilenos, que possibilita a interferência dos parlamentares, que ainda traz riscos de que a nova Constituição não modifique as estruturas político-sociais tão criticadas atualmente.

O plebiscito tem data marcada para abril de 2020. Nesta primeira consulta popular, duas perguntas serão feitas: 1) Você quer uma nova Constituição? Aprovo ou Nego. 2) Que tipo de órgão deve escrever a nova Constituição? Convenção Mista Constitucional ou Convenção Constitucional.

A Convenção Mista determina 50% de participação de parlamentares e 50% membros eleitos pela população. A Convenção Constitucional é integrada 100% por representantes eleitos. A eleição deste comitê também já tem data marcada para outubro de 2020, juntamente com as eleições regionais e municipais.

A nova Constituição terá ainda uma regra que não foi consenso de todos os partidos políticos. O Partido Comunista, o Partido Progressista, o Humanista e o Regionalista Verde não participaram da reunião dos parlamentares nesta terça, alegando que a negociação era uma estratégia à portas fechadas, que dava as costas aos movimentos sociais. A aliança Frente Ampla, formada por partidos de esquerda, tampouco ficou completamente satisfeita, com alguns membros se somando ao acordo.

A principal crítica é a regra dos 2/3, um pedido que foi exigência do presidente Sebastián Piñera. Ela se aplica da seguinte forma: a Constituição será escrita desde o zero, mas cada trecho incluído deve ser aprovado por 2/3 ou 66% dos membros da Convenção. Caso contrário, simplesmente ficará fora do texto e somente terá a chance de retornar à legislação por meio de projetos de lei no Congresso, que favorecem novamente os governistas.

O risco é que o vazio legal obrigue a retornar trechos que ditavam a Constituição de Pinochet. Essa porcentagem tomou boa parte das discussões na noite de ontem, alguns representantes políticos apelando para diminuir em 3/5 o quórum para a aprovação de trechos na nova Constituição, caso contrário o alto poder de veto da direita dará o controle de representação desse setor nas novas leis do país.

Ao todo, representantes de 10 partidos políticos da esquerda, centro e direita assinaram o histórico acordo que, se por um lado ainda não representa um verdadeiro consenso, a simples vista indica ser o início do fim da Constituição de 1980. Por outro, a mudança de nome de “Assembleia Constituinte” para “Convenção Constituinte” e a memória ainda viva de um arranjo da “Concertación” criada no país para abandonar a tardia ditadura em 1990, que acimentou as estruturas neoliberais criadas naqueles tempos escuros, ainda não tranquilizam totalmente os que lutam há 45 anos por tempos melhores. “Isso não acabou”, dizem.