China e EUA: o que há por trás da maior disputa comercial do mundo? Por Nara Lacerda

Atualizado em 25 de agosto de 2020 às 10:04
US President Donald Trump, shakes hands during a press conference with China’s Vice Premier Liu He(L), the country’s top trade negotiator, before they sign a trade agreement between the US and China during a ceremony in the East Room of the White House in Washington, DC on January 15, 2020. (Photo by SAUL LOEB / AFP)

PUBLICADO NO BRASIL DE FATO

POR NARA LACERDA

Mais de seis meses atrás, China e Estados Unidos definiram que retomariam diálogos comerciais – após dois anos de embates – mas pouco aconteceu desde então. Desde 2018, as relações entre as duas maiores economias do mundo se arrastam marcadas por imposições de tarifas sobre produtos importados, barreiras comerciais e até acusações de espionagem. Mas, por trás e além destes conflitos, está em jogo a definição sobre quem será o protagonista da economia global nas próximas décadas.

O professor do Departamento de Política e Relações Internacionais da Universidade de Edimburgo, Oliver Turner, especialista em relações dos grandes países do ocidente com a China, avalia que há uma preocupação dos EUA de que o país asiático passe a representar um papel que por cinquenta anos foi protagonizado por eles.

“Os Estados Unidos estão preocupados com a concorrência da China em muitas áreas, mas principalmente em termos de tecnologia. Isso inclui tecnologia militar, mas também inteligência artificial, 5G e assim por diante.”

“Políticos americanos estão preocupados que a China se torne líder global nessas áreas e que comece a fornecer tecnologias ao mundo da mesma forma que os Estados Unidos têm feito há muitas décadas. Em última análise, eles estão preocupados que a China possa começar a ‘escrever as regras’ de como o mundo funciona, como os EUA fizeram por pelo menos 50 anos”, afirma Turner.

Os EUA já competiram antes com outros países pela liderança global, mas a diferença agora é que a disputa está mais equilibrada, e, até sob alguns ângulos, desfavorável a eles, segundo Elias Masco Khalil Jabbour, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e autor do livro China Hoje: Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado.

“A briga é para deter a China e sua expansão econômica, política, geopolítica e tecnológica. Pela primeira vez na história, os EUA estão diante de um rival que tem uma tecnologia avançada em um ponto sensível do processo de desenvolvimento e controle (comunicações) ao qual eles mesmos não têm uma alternativa, um produto similar para concorrer.”

O acordo e a pandemia

O acordo assinado no início do ano era uma luz no fim do túnel para diminuir as tensões, que influenciam o comércio no mundo todo. China e Estados Unidos concordaram em que o governo dos EUA reduziria novas tarifas, o chinês importaria mais dos EUA e protegeria melhor a propriedade intelectual. Mas a pandemia do novo coronavírus atrapalhou os planos. E Trump tratou de piorar ainda mais as coisas.

Durante a campanha eleitoral ele já tentava apresentar a concorrência comercial de outros países como o problema a ser enfrentado e a China, por ser o concorrente de maior peso, sempre foi o principal alvo. O coronavírus reacendeu o discurso e barrou as tentativas de acordo e vem nos brindando com ocasionais pioras no clima, como nos últimos dias.

Em menos de uma semana, as notícias foram das afirmações do governo Trump sobre um novo bloqueio em exportações para o país asiático à um alerta militar máximo, com a presença de um suposto navio com mísseis dos Estados Unidos próximo ao território da China. Por fim, um alento: a notícia de que nos próximos dias as duas nações devem se encontrar para abrir o diálogo, mas sem sinalização exata de quando e como isso vai acontecer.

Monica Bruckmann, professora de Ciência Política da UFRJ, avalia que a disputa entre os dois países têm se aprofundado nos últimos tempos, mas são muito anteriores ao governo atual, datando da época da “guerra ao terrorismo’, no começo do século, que gerou as invasões de Iraque e Afeganistão. Ela explica que as aventuras militares inciadas por George W. Bush custaram caro ao contribuinte americano e aumentaram o “processo de debilitação da economia dos Estados Unidos, que acumulam uma das maiores dívidas públicas do mundo”.

“A causa fundamental foram os orçamentos sucessivos para manter essas guerras. E o que a gente vê é que ao mesmo tempo em que a economia dos Estados Unidos se debilita, a economia chinesa se fortalece e as taxas de crescimento da China têm causado um novo processo muito interessante na economia mundial, de centralidade na Ásia”, afirma Bruckmann.

O professor Oliver Turner afirmar que os avanços tecnológicos da China vêm sendo usados de como uma narrativa que, convenientemente, tira a responsabilidade dos Estados Unidos pelos próprios fracassos.

“Se as coisas estão indo mal com a economia dos EUA, é melhor culpar a China do que admitir seus erros ou falhas. São os executivos e gerentes americanos que optaram por terceirizar suas operações para a China”, explica.

“É claro que os políticos americanos não podem culpar os americanos pela perda dos empregos americanos, então a culpa é colocada na China (embora os consumidores americanos realmente se beneficiem das importações chinesas baratas e as comprem regularmente, enquanto também reclamam que a China é ruim para sua economia). Portanto, culpar a China é uma estratégia política eficaz. Nem sempre é justificada com fatos ou realidade.”

Como o resto do mundo (e o Brasil) se equilibram?

Na esteira e sob influência dos Estados Unidos, países como Austrália, Índia, Japão e Reino Unido já declararam resistências a negociações com a China, em especial as que envolvem compra de tecnologia do país asiático. O professor Oliver Turner cita ainda disputas envolvendo nações da Europa Ocidental como Suécia, Noruega, Alemanha e um determinado ceticismo da União Europeia como um todo.

“Essa divisão crescente, é claro, não é uma coisa boa, inclusive para a cooperação global em questões críticas mais amplas, como mudança climática, desenvolvimento internacional e assim por diante.”

A China segue ampliando seus negócios com países em desenvolvimentos, com maior presença no continente africano, América Latina, Ásia e Leste Europeu. A busca pela vacina do coronavírus, as parcerias com outras nações para universalizar a imunização e a ocupação de espaços de debate renegados pelos Estados Unidos, como a Organização Mundial da Saúde são exemplos. O país é cobrado, por outro lado, a fazer mais pelo clima e o combate ao aquecimento global.

A China é o maior parceiro comercial brasileiro, comprando parte expressiva das nossas exportações de minério, carne, soja, entre outros. Mas a relação não é tão harmônica como era na década passada, quando surgiu os BRICS, o grupo formado por países emergentes como Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul.

O governo de Jair Bolsonaro não chegou a declarar que poderia a rejeitar entrada de tecnologia chinesa no Brasil em nome de uma aliança incondicional com os Estados Unidos. Mas sofre pressões para tal e não amplia esforços para que o país deixe de ser mero exportador de matéria prima.

Soma-se a isso, o comportamento da ala ideológica do governo, que desde o início da gestão atual, vem gerando saias justas constrangedoras. O deputado federal Eduardo Bolsonaro, (PSL), filho do presidente, publicou insinuações de que a China teria reforçado a disseminação do vírus para “esconder algo”, que ele nunca explicou o que seria. Após uma cobrança de desculpas por parte da embaixada do país asiático, o ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, preferiu dizer que o embaixador chinês reagiu de maneira desproporcional.

Em abril, o então ministro da Educação, Abraham Weintraub, fez chacota racista com o sotaque de imigrantes asiáticos em uma rede social. Trocando a letra R pelo L na publicação, ele deu a entender que a China sairia fortalecida da crise do coronavírus. O ex-ministro – que hoje está fora do Brasil e do governo após ser pivô de uma outra crise, desta vez com o Supremo Tribunal Federal – usou o personagem de Maurício de Sousa, Cebolinha, para sugerir que existe um “plano infalível para dominar o mundo.” por parte dos chineses.

Monica Bruckmann avalia que o esfriamento nas relações com nosso principal parceiro comercial tem muita relação com a retomada do conservadorismo no poder e com um alinhamento aos Estados Unidos que não traz vantagens consistentes e objetivas.

“É a visão do governo brasileiro, que se aliou incondicionalmente à política dos Estados Unidos, sem praticamente nenhuma retribuição, abandonando e destruindo o que foram as maiores conquistas do século XXI, os espaços de integração regional (…) Um processo que foi abruptamente interrompido a partir do governo Temer até o governo atual. Isso tudo foi combatido por essas visões conservadoras que renunciaram a qualquer visão de desenvolvimento nacional.”