“Cidadão de bem”: CAC usa arma contra esposa, tenta sufocá-la e é preso com maconha e 50 comprimidos de ecstasy

Atualizado em 4 de abril de 2023 às 11:23
Projéteis disparados e intactos apreendidos na casa de atirador esportivo estão há mais de quatro meses em posse da Polícia Civil, mas Justiça ainda aguarda laudo pericial (crédito: TJ-SP)

Na manhã de quarta-feira do dia 12 de outubro de 2022, a esposa (cujo nome não será publicado) do empresário paulistano Alessandro Gioacchini Martinez, dono da concessionária Elite Car Motors, saiu de sua casa acompanhada de sua enteada de 11 anos e do cachorro da família. Passou cerca de 45 minutos na rua, passeando com a menina e com o animal de estimação. Depois, voltou para casa.

Até abrir a porta de sua residência, ela acreditava que ainda estava tudo bem naquele feriado de quarta-feira, pensava no almoço que prepararia para ela, o marido e a enteada. Na sua memória e no seu rosto ainda estavam vivas as memórias de quatro dias atrás, 8 de outubro, data da última discussão do casal e dos socos na cara que tomou de Alessandro, além do mata-leão que a fez desmaiar.

Naquele dia 8, quando a vítima voltou a si após o desmaio, a primeira coisa que viu foi o marido tentando tomar-lhe a pulsação, para saber se continuava viva. Por ora, continuava viva, mas, avisou ele na ocasião, se ela contasse algo à polícia, iria matá-la.

Com medo, a mulher de 26 anos decidiu fechar a boca. Afinal, sabia que Alessandro Gioacchini Martinez, de 44 anos, possuía registro de CAC (colecionador, atirador esportivo e caçador), obtido um ano antes, durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), que ao longo de seu mandato concedeu nada menos do que 904 mil novos registros de armas para os cidadãos de bem que se diziam CACs.

Sabia também que o esposo possuía três pistolas em casa – devidamente registradas e liberadas pelo Exército Brasileiro para uso do marido, das marcas Glock, Taurus e CZ – e muita munição. Sabia também dos negócios que o esposo e cidadão de bem mantinha em paralelo à concessionária… Melhor fechar a boca.

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De qualquer forma, de volta à manhã do dia 12, ao abrir a porta e entrar em casa com a filha de Alessandro e o cachorro, a mulher foi surpreendida pelo marido, em estado alterado e aos gritos, perguntando por que ela havia demorado tanto, onde tinha ido e por que não atendera à sua ligação no celular.

Antes de conseguir responder que não ouvira o telefone, já foi pega e puxada pelos cabelos, tomou novos socos e passou a ser sufocada. Tudo sob as vistas da criança de 11 anos, filha do agressor, que começou a gritar ao ver o rosto da madrasta ficando vermelho, e depois roxo.

Alessandro, então, soltou a mulher. Foi buscar em seu quarto uma de suas pistolas de atirador esportivo registrado, voltou e entregou na mão da esposa, sugerindo-lhe que se matasse. Ainda recuperando o fôlego, ela se recusou, no que Alessandro tomou-lhe a arma de volta, passando a apontar para o rosto da vítima, mandando que lhe entregasse o celular, ele queria ver com quem ela andava falando.

Enquanto tinha seu aparelho vasculhado pelo agressor, a mulher tratou de fugir correndo, ouvindo atrás de si três disparos efetuados. Rezou para que não tivessem atingido a menina.

Então, achou que bastava.

Correu até achar e parar uma viatura policial. Contou o que tinha acabado de acontecer e não só isso. Relatou as agressões de quatro dias antes. Disse que o marido tinha droga guardada em casa, além das armas. Contou já ter visto em mais de uma oportunidade o marido vendendo aquelas coisas.

Por fim, disse que queria fazer exame de corpo de delito, e pedir uma ordem de restrição contra Alessandro, e que estava com medo de morrer, e que queria que os policiais voltassem com ela ate sua casa, lá eles veriam que era verdade tudo o que ela dizia, lá eles poderiam ver se estava tudo bem com a menina, pelo amor de Deus.

Todas as informações desta reportagem constam nos autos do processo TJ-SP 0052814-66.2012.8.26.0002, no Fórum Regional de Santo Amaro, na capital paulista. Lá, constam também as fotos da vítima tiradas após as agressões. As imagens estão parcialmente reproduzidas abaixo, a fim de preservar a integridade da vítima.

Vítima mostra ferimentos após ser agredida pelo marido, atirador esportivo que efetuou três disparos dentro de casa após sufocar a mulher (crédito: TJ-SP)
Vítima mostra pescoço marcado pelo marido, atirador esportivo que efetuou três disparos dentro de casa após sufocar a mulher (crédito: TJ-SP)
Boca ferida, pescoço marcado e arma apontada para o rosto: consequência das agressões de um atirador esportivo (crédito: TJ-SP)

Ao entrar na casa de Alessandro e da vítima, a polícia encontrou a menina assustada, mas sem ferimentos. Além disso, encontrou, conforme transcrição de boletim de ocorrência:

“1 porção de maconha (28,1 g)
2 tijolos de maconha (706,9 g)
50 comprimidos de ecstasy (26 g)
4 porções de haxixe (13,4 g)
6 coldres
2 porta carregadores
1 adaptador para submetralhadora
396 cartuchos de armas de fogo de calibres diversos
7 carregadores de munição
Uma balança de precisão
Certificados de registros de armas de fogo legalizadas
3 pistolas
R$1.700,00 (mil e setecentos reais) em espécie”

Alessandro foi preso em flagrante delito na mesma hora. Atualmente, é réu em processo penal pelos crimes de violência contra a mulher, disparo de arma de fogo, porte ilegal de arma (descobriu-se, depois, que uma das armas em sua posse não estava registrada em seu nome, e sim no de “um amigo”), tráfico de drogas e desacato (ele não queria entrar na viatura, xingou os policiais e disse que se arrependeriam por fazer aquilo, ele conhecia muita gente grande na polícia, sempre de acordo com os autos do processo e testemunhas da ocorrência).

Alessandro não segue preso, responde ao processo em liberdade. Sua defesa realizou, ao todo, cinco pedidos de soltura de outubro de 2022 a fevereiro deste ano. Em todos, alegou que o empresário não é traficante, mas sim usuário. Em um deles, um habeas corpus (negado) de 17 novembro do ano passado, chegou a dizer, com os destaques inseridos pelo DCM:

“É fato incontroverso que Alessandro é usuário compulsivo de cannabis e ecstasy, fazendo uso diária de ambas, a quantidade de droga encontrada, (SIC) se justifica pelo fato de Alessandro comprar uma quantidade maior primeiro para baratear o preço e segundo para não se arriscar indo nas chamadas ‘bocas de fumo’ para adquirir entorpecente.”

Em todas as cinco peças defensivas, justificou a posse das armas dizendo que as tinha registradas, com todo direito de possuí-las (pois é atirador esportivo inscrito em clube de tiro), em consonância com as regras e autorizações criadas durante o governo Bolsonaro, e com a devida chancela do Exército Brasileiro, como mostra trecho reproduzido abaixo:

“Com relação as armas e das munições localizadas, convém esclarecer que todas as armas possuem registro em nome do acusado, registros estes que constam no auto de Boletim de Ocorrência”

Defesa de Alessandro afirma que armas encontradas na cena do crime estavam registradas em seu nome, mas documento anexado pelos próprios advogados aponta que uma das pistolas (Taurus) não estava registrada no nome do acusado (fonte: TJ-SP)

Em nenhum momento a defesa de Alessandro negou as agressões contra sua esposa.

Quatro tentativas de libertar o réu foram recusadas pela Justiça. De outubro de 2022 a fevereiro de 2023, o Ministério Público e a Justiça cobraram da Polícia Civil quatro vezes a entrega dos laudos periciais das armas e das substâncias, que estavam e continuam atrasados até a publicação desta reportagem, dia 4 de abril.

Prosseguindo a situação, seria impossível manter o réu preso preventivamente sem as provas de que as substâncias encontradas são de fato o que parecem ser, e sem as provas de que uma das pistolas apreendidas é de fato a arma do crime de disparo de arma de fogo.

Assim, no dia 27 de fevereiro deste ano, foi publicada, do Diário Oficial da Justiça de São Paulo, a decisão referente ao quinto pedido de liberdade do réu:

“Analisando-se os autos, verifico que até o momento não há, apesar das cobranças, o laudo químico toxicológico (laudo definitivo), laudo da perícia realizada no local dos fatos, bem como o laudo das armas de fogo apreendidas.

Do mesmo modo, não foram juntadas as imagens das câmeras instaladas nas fardas dos policiais, conforme requisição deste Juízo.

Levando-se em conta a primariedade do réu, bem como o tempo em que se encontra detido sem a possibilidade de se encerrar a instrução, entendo que sua manutenção no cárcere pode ensejar constrangimento ilegal. Assim, defiro ao réu o benefício da liberdade provisória.”

Então, Alessandro Gioacchini Martinez está solto. Sua mulher obteve uma ordem de restrição para que o marido não possa se aproximar a uma distância menor do que 200 metros. Ela espera que ele, hoje em dia, respeite as leis que nunca respeitou e fique longe dela.

Se o acusado falava a verdade quando ameaçou os policiais que o prendiam, que conhecia muita gente na polícia, que iriam se arrepender, não se sabe.

O que se sabe, de fato, é que na edição desta terça-feira (4), o Diário Oficial da Justiça traz um sexto pedido pelos mesmos documentos, reiterando solitação anterior (a quinta desde outubro) do Ministério Público:

“Processo 1523180-97.2022.8.26.0228 – Ação Penal – Procedimento Ordinário – Tráfico de Drogas e Condutas Afins – A.G.M.
Com brevidade, providencie-se nos exatos termos em que requerido no último parágrafo da manifestação ministerial de fl. 420.
– ADV: LEONARDO VELLOSO LIOI (OAB 245591/SP), WELLINGTON NASCIMENTO LIMA (OAB 188651/SP)”

A vítima aguarda ansiosa e, por enquanto, viva.