Comportamento

Cléo Pires e a hipocrisia do discurso antidrogas. Por Nathalí Macedo

 

Novidade novíssimamente inédita: Cléo Píres virou notícia.

Tudo bem, porque ela aparentemente não se incomoda com o fato de virar notícia, muito pelo contrário. E quem sou eu pra julgar o close da amiga?

Se a “mídia” (?) pensasse assim, talvez não desse tanto Ibope ao fato de a moça ter sido filmada dançando numa festa, meio alterada, com uma “garrafinha suspeita” na mão direita.

“Garrafinha suspeita” é um eufemismo para lança-perfume – (desbaratina, não dá pra ficar imune!) –, já que é frequentemente necessário falar o óbvio.

Do mesmo modo, “cigarrinho suspeito” é maconha, e açúcar refinado é cocaína, segundo alguns de nossos nobres representantes no Senado.

O fato é que seria menos patético se a mídia tratasse as drogas com menos cerimônia. Menos eufemismos. Menos hipocrisia. Porque os roteiristas, editores, jornalistas etc estão em geral familiarizados com este universo (rivotril, cafeína, nicotina, uisquinho, baseado e eventualmente uns tequinhos que eu sei) – e sobretudo porque, afinal, as drogas estão em toda parte.

Elas estão nas lanchas dos políticos brasileiros e também nas Universidades. Nos filmes – há algum filme nacional, por exemplo, que não tenha drogas em ao menos uma cena?

Elas estão até nas novelas da Globo, Santana – Só Cana – que o diga. (Elas estão também nos bastidores da globo, posso apostar).

E o discurso proibicionista, a despeito de tudo isso, continua caretíssimo.

Isso seria estranho se não soubéssemos exatamente por quem os sinos dobram: a guerra às drogas é uma guerra contra uma população específica e muito bem delimitada.

Não é uma guerra contra Cléos Píres nem contra políticos. É uma guerra contra os Zés Pequenos da vida real.

Além dessa questão, que já é suficientemente problemática, há a liberdade individual, que deveria ser respeitada em “um país de todos” como o Brasil, mas é cuspida com crucifixos em tribunais e julgamentos a “cigarrinhos suspeitos”, aqueles que todo mundo já provou ou já quis provar na vida.

Sendo didática, na oração “ELA está SE drogando”, perceba que o sujeito (intederminado, não me comprometam!) está fazendo algo – no caso, se drogar – a SI mesmo. Então o que você, sujeito, tem a ver com isso?

Deixa a menina sambar em paz.

A descriminalização das drogas é urgente porque a guerra às drogas é um pretexto (perfeito) para a perpetuação do secular genocídio negro, mas sobretudo para que não sejamos obrigados a ver o lança perfume – ou benzina, ou água benta, ou seja lá o que for aquilo porque definitivamente não é problema nosso – do mulherão da porra da Cléo Píres virando notícia.

Precisamos todos rejuvenescer.

Nathalí Macedo

Escritora, roteirista, militante feminista, mestranda em Cultura e Arte. Canta blues nas horas vagas.

Disqus Comments Loading...
Share
Published by
Nathalí Macedo

Recent Posts

Cazuza, Renato Russo e mais: Madonna homenageia artistas mortos pela AIDS

Durante sua apresentação na Praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, na noite deste sábado…

1 hora ago

Uma figura fora de esquadro. Por Moisés Mendes

Eduardo Leite é, na história da política gaúcha, uma das figuras públicas mais deslocadas do…

2 horas ago

Número de mortos pelas chuvas no Rio Grande do Sul chega 55

O saldo de vítimas fatais das intensas chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul…

3 horas ago

Forças Armadas fizeram mais de 10 mil resgates aéreos no RS

O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, e os ministros Paulo Pimenta (Secretaria…

4 horas ago

Há 1 mês, Leite flexibilizou regras ambientais em áreas de proteção de águas

Em abril deste ano, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), sancionou…

5 horas ago

Com 50 mil em áreas de risco, Canoas ordena evacuação de 11 bairros

“Este é o episódio mais trágico da história de Canoas. Uma situação além da nossa…

5 horas ago