Com discurso de estadista, Lula se torna a gastrite de Bolsonaro até 2022. Por Leonardo Sakamoto

Atualizado em 10 de março de 2021 às 17:00
Lula. Foto: Ricardo Stuckert/Fotos Públicas

Publicado originalmente no portal UOL

POR LEONARDO SAKAMOTO

Em um discurso de estadista e de candidato à Presidência da República, Lula se colocou de volta no jogo eleitoral, nesta quarta (10), por mais que diga que é muito cedo para falar disso. E já vai ajudando a provocar pequenos milagres: o presidente Jair Bolsonaro afirmou, hoje, que nunca foi negacionista, nem contra vacinas, apesar de ter sido negacionista e contra vacinas.

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A longa intervenção e a entrevista coletiva, realizadas na Sede do Sindicato dos Metalúrgicos da ABC, ocorrem dois dias após a anulação das condenações do petista na Lava Jato por decisão do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, e um dia depois do julgamento da suspeição do ex-juiz Sergio Moro, interrompida pelo pedido de vistas do ministro Kassio Nunes Marques.

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Foram direcionadas não apenas à militância, mas também pensadas a um público maior, focando mais em análise dos problemas do país do que reclamando de sua condenação.

As reações ao discurso de Lula foram um bom indicador do desgaste do atual presidente.

Com exceção dos bolsonaristas-raiz e de robôs, grupos que começaram a xingar Lula antes mesmo dele começar a falar, não foram poucas as postagens comparando ambos. Não a comparação descabida feita por parte do mercado e seus representantes que, recentemente deliraram ao afirmar que Lula e Bolsonaro são dois extremos semelhantes. Mas aquelas que lembraram a falta que faz um político, de qualquer orientação ideológica, que administre o país durante uma crise de grandes proporções ao invés de focar na gestão dos problemas de seu clã e na sua reeleição.

Nesse sentido, a postagem que mais repercutiu, claro, foi a do ex-presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Apesar de desafeto declarado de Jair Messias, ele, definitivamente, não pode ser acusado de esquerdista.

“Você não precisa gostar do Lula para entender a diferença dele para o Bolsonaro. Um tem visão de país; o outro só enxerga o próprio umbigo. Um defende a vacina, a ciência e o SUS; o outro defende a cloroquina e um tal de spray israelense”, afirmou.”Um fundou um partido e disputou quatro eleições; o outro é um acidente da história. Tenho grandes diferenças com o Lula, principalmente na economia, mas não precisa ser petista fanático para reconhecer a diferença entre o ex-presidente e o atual.”

Ao longo de sua fala, Lula delineou elementos que deveriam fazer parte de um projeto nacional, mas que estão ausentes na atual administração, como o combate à desigualdade social, a necessidade de investimentos nacionais e internacionais e uma política externa que seja independente de qualquer país, citando especialmente os Estados Unidos.

E com um discurso de tom bem mais conciliador do que o dos últimos anos, resvalando algumas vezes no “Lulinha Paz e Amor”, de 2002, o ex-presidente demonstrou empatia pelos mortos e feridos pela pandemia de covid-19, abrindo distância da insensibilidade crônica de Bolsonaro. E disse que a Lava Jato é um capítulo ultrapassado em sua vida. Apesar de ter afirmado que não guarda rancor, bateu bastante no ex-juiz Sergio Moro e no presidente.

Fez campanha para a vacina, qualquer que seja o seu fabricante, e pediu para os brasileiros – mesmo os imunizados – manterem distanciamento social para salvar vidas. Criticou o negacionismo e ridicularizou o terraplanismo, literalmente. Chegou a dizer que o Zé Gotinha, mascote da vacinação, estava sumido porque Bolsonaro lhe deu um chega-pra-lá.

Misturou críticas à parte da imprensa, por conta de seu papel de transmissão acrítica e militante da Lava Jato, com elogios ao jornalismo, inclusive da TV Globo – de quem é crítico contumaz. O próprio evento em si, uma coletiva à imprensa, foi um contraponto ao comportamento de Bolsonaro, conhecido por ameaçar e agredir jornalistas e por encerrar coletivas com perguntas que não o interessam.

Defendeu um auxílio emergencial de R$ 600, contrapondo-se àquele de R$ 250, em média, que o governo almeja voltar a pagar. Reclamou dos preços altos e da falta de diálogo com empresários e sindicatos para gerar emprego. E defendeu que o valor dos combustíveis na bomba não siga a cotação internacional – algo que o atual presidente também defende. Ou seja, uma visão econômica mais do Lula de 2006, do que aquele de 2002.

O ex-presidente ironizou aqueles que têm dito que ele é um extremista, como Bolsonaro.

“Sou radical porque quero ir na origem dos problemas do país, porque quero construir um mundo mais justo e mais humano. Um mundo em que pedir aumento de salário não seja crime, que mulher não seja tripudiada por ser mulher. Um mundo que venha a abolir o preconceito racial, em que não tenha mais bala perdida, que o jovem possa transitar livremente sem a preocupação de tomar um tiro, em que as pessoas sejam felizes”, afirmou Lula.

É discurso de campanha? Claro. Tanto que não tratou da questão da corrupção, pela qual é sistematicamente cobrado. Lula é talvez um dos maiores oradores do país.

Mas o pacote que apresentou se contrapõe ao discurso de campanha que Bolsonaro vem empunhando desde o primeiro dia de seu governo, centrado na defesa do direito de matar, seja através da liberação de armas e munição, da autorização para desmatar e usar agrotóxicos ou da estratégia do não-enfrentamento ao coronavírus – que pode ser resumido em “pegar, pegou, morrer, morreu, bora trabalhar, e se chorar é mimizento”.

Você pode não gostar de Lula e ser contra o seu retorno à cena política nacional. Mas há de convir que ele vai forçar uma mudança no jogo político, trazendo de volta o componente social para a discussão do desenvolvimento econômico, por conta do medo de Bolsonaro de perder as eleições. E que, apesar dos muitos defeitos do ex-presidente, o discurso de hoje não flertou com autogolpe de estado, nem passou por cima de 270 mil mortos.