Como a Exxon conquistou a Guiana – sem disparar um único tiro

Atualizado em 15 de dezembro de 2023 às 11:52
Letreiro com o logo da “Exxon”. (Foto: Reprodução)

A Suprema Corte da Guiana proferiu uma decisão histórica em maio contra a Agência de Proteção Ambiental do país e a subsidiária da Exxon Mobil na região. Se parece estranho que a EPA e a Exxon tenham sido co-réus num caso, sim, essa é precisamente a questão, diz a matéria de Amy Westerwelt no Intercept.

Frederick Collins e Godfrey Whyte, dois cidadãos comuns, acusaram a Agência Ambiental de não cumprir os requisitos, ao não exigir garantias da Exxon contra possíveis vazamentos de petróleo. Tom Sanzillo, diretor de análise financeira do Instituto de Economia Energética e Análise Financeira diz que as consequências potenciais para a Guiana são catastróficas.”

O projeto de perfuração da Exxon na Guiana é do tipo mais arriscado: perfuração offshore em águas profundas, com intensa pressão sobre os equipamentos As condições são semelhantes às que precederam a explosão da Deepwater Horizon em 2010, que poluiu o Golfo do México, custando à BP US$ 69 bilhões. A própria Exxon avalia que um vazamento similar poderia jogar petróleo em 14 ilhas diferentes do Caribe – a maioria delas depende da pesca e do turismo – e todas elas iriam responsabilizar a Guiana pelos danos.

Assim, a perfuração offshore na Guiana exige não só uma apólice de seguro da Esso, mas também uma garantia financeira ilimitada da holding para cobrir o seguro. Para a Esso, a acusação deturpa a lei e a empresa fez um acordo com a agência ambiental da Guiana. Mas o juiz Sandil Kissoon decidiu a favor da ação de Collins e Whyte.

“A Agência Ambiental aplicou a lei de modo frouxo, colocando esta nação e o seu povo em grave perigo potencial de desastre calamitoso”, escreveu Kissoon numa decisão de 56 páginas. O juiz chamou a Esso de “insincera e enganosa” e a agência de “relaxada, flexível e submissa”. Muitos temem pela segurança do juiz, mas isso mostra que a Exxon não capturou a Suprema Corte da Guiana.

Na Guiana, tornou-se difícil distinguir onde termina a empresa petrolífera e onde começa o governo. Os executivos da Exxon juntam-se ao presidente da Guiana em partidas de críquete, e o vice-presidente organiza regularmente conferências de imprensa para defender a empresa petrolífera. Vincent Adams, engenheiro petrolífero guianense e antigo chefe da EPA do país, tem sido um dos mais duros críticos da agência. “Não há supervisão porque a Exxon não quer supervisão”, diz Adams.

“Cumprimos todas as leis em todas as etapas das fases de exploração, avaliação e produção”, disse Meghan Macdonald, assessora de comunicação da Exxon. “Estamos empenhados em desenvolver de forma responsável os recursos da Guiana para maximizar o valor para todas as partes interessadas, incluindo o governo e o povo da Guiana”.
No entanto, Kissoon ordenou que a agência ambiental emitisse uma ação coercitiva imediata contra a Esso, exigindo que esta fornecesse uma garantia financeira da Exxon e prova de seguro de responsabilidade ou a perfuração seria suspensa.

A EPA recorreu e, em 8 de junho, um juiz do tribunal de apelações suspendeu temporariamente a ordem até que o recurso fosse ouvido, mas exigiu que a Exxon apresentasse uma garantia de US$ 2 bilhões. A advogada do caso, Melinda Janki, luta para impedir a exploração de petróleo no seu país natal há mais de uma década. Para Janki, a decisão é significativa independentemente do resultado do recurso.

Para Melissa, a decisão mostra como o cidadão comum pode enfrentar grandes empresas. “O juiz Kissoon colocou o Estado de direito acima dos interesses da Exxon Mobil. Isso é o que todos os juízes de todos os países deveriam fazer, não apenas na Guiana”. A situação na Guiana é mostra do colonialismo de extração no Sul Global

O que tem acontecido nos últimos cinco anos na Guiana é emblemático de uma onda mais ampla de colonialismo extractivo que está a ocorrer em países do Sul Global. Para Carroll Muffett, presidente do Centro para o Direito Ambiental Internacional, “Os países que não têm histórico de exploração petrolífera estão sendo empurrados para isso no momento em que o mundo quer eliminar gradualmente os combustíveis fósseis.”

Em 2015, quando a Exxon Mobil anunciou que tinha encontrado petróleo na costa da Guiana, pouca gente entendeu o significado da descoberta. Melissa Janki foi uma delas. “Para a Guiana, foi um desastre”, diz a advogada. Ironicamente, ela descobriu isso trabalhando para a BP na Inglaterra – ela emigrou aos 12 anos de idade por conta da turbulência política na Guiana – EUA e Inglaterra temiam uma “nova Cuba”.

“Na época, parecia que a BP era um bom lugar para trabalhar”, disse ela. Melissa diz que o foco de uma empresa petrolífera é só o lucro: “Eles não estão lá para promover os direitos humanos. Eles não estão lá para proteger o meio ambiente. Eles estão lá para aumentar o preço das ações e dar gordos dividendos aos seus acionistas”, diz Melissa.

Quando o apelo de trabalhar para a BP passou e as tensões políticas no país esfriaram, Melissa regressou à Guiana – em 1992, o país teve as suas primeiras eleições completamente livres e Cheddi Jagan – o candidato que a CIA passou décadas a tentar derrotar – foi eleito. Uma nova Constituição e uma lei ambiental forte foram aprovadas.

Numa das audiências para discutir a regulação ambiental, Melissa deu sugestões sobre a legislação e foi ouvida por um burocrata do governo. Melissa explicou porque essa legislação seria fraca e ineficiente. O funcionário perguntou a Melissa se ela gostaria de trabalhar como consultora na redação da lei, e ela aproveitou a oportunidade. “Eu coloquei o impacto no clima, o impacto no ar, e coloquei princípios de gestão ambiental, então coisas como o poluidor-pagador e o princípio da precaução e princípios do capital natural”, diz ela.

A versão de Melissa da regulação ambiental foi ratificada pelo governo de Jagan em 1996. Apenas alguns anos depois, o país assinou o seu primeiro contrato com uma empresa petrolífera: uma parceria entre a Exxon Mobil e a Shell. O contrato concedeu à parceria o direito de explorar petróleo na Guiana. O petróleo era abundante e mais fácil de obter noutros países sul-americanos, por isso a Guiana não era uma prioridade.

Melissa começou a fazer lobby junto à Comissão de Reforma Constitucional da Guiana para que o direito humano a um ambiente saudável fosse um direito. “Olhei para constituições em todo o mundo que, naquela época, tinham o direito a um ambiente saudável inscrito nelas. E então apresentei os argumentos para incluir isso na constituição da Guiana”. Mais uma vez, funcionou. O direito a um ambiente saudável para as gerações atuais e futuras foi ratificado como parte da constituição da Guiana em 2003.

Navio cria ilha artificial para servir de porto de produção offshore de petróleo na foz do rio Demerara, em Georgetown, na Guiana, em 12 de abril de 2023. Foto: Matias Delacroix/AP

Só em 2008, alguns meses depois de a Venezuela nacionalizar o petróleo e expulsar empresas petrolíferas estrangeiras, a costa da Guiana começou a ser explorada. A Shell abandonou a parceria em 2014, enquanto a Exxon trouxe dois novos parceiros: a Hess Corporation, uma empresa petrolífera americana independente, mais conhecida como pioneira no boom do fracking, e a China National Offshore Oil Corporation.

No ano seguinte, a Exxon anunciou que tinha encontrado 10 bilhões de barris. Não era qualquer petróleo: o tipo mais fácil de refinar, com o preço mais elevado no mercado global. A empresa agiu rapidamente para conquistar os corações e mentes na sociedade civil. Um dos primeiros grandes investimentos da Exxon na Guiana foi patrocinar a Caribbean Premier League, um popular torneio de críquete, e a equipe do país, os Amazon Warriors.

“Quando você andava nas ruas, você ouvia todos os guianenses dizendo: ‘Graças a Deus pela Exxon! Se não fosse a Exxon, nunca teríamos conseguido ver o críquete ao vivo na tevê’”, disse Glenn Lall, editor do jornal Kaieteur News. “Você vê como isso é perigoso?”

A empresa e o governo contrataram jornalistas que trabalhavam na área do petróleo e do gás, afastados dos jornais do país e transferidos para relações públicas corporativas e redações estatais. Um desses jornalistas, que pediu que o seu nome não fosse divulgado para evitar retaliações, disse que a oferta padrão incluía um grande aumento salarial, um título elevado e um carro grátis.

Como consequência, disse Lall, restam poucos jornalistas para cobrir a exploração petrolífera com um olhar crítico. Dos seis repórteres que já cobriram petróleo e gás para o Kaieteur News, apenas um permanece. Desde que a Exxon despachou o seu primeiro barril de petróleo em 2019, Melissa abriu sete processos separados contra o governo da Guiana, pedindo-lhe que fizesse uma coisa: fazer cumprir as leis ambientais que ela ajudou a redigir.

Ela obteve uma vitória em 2020, quando o governo reduziu a licença de perfuração da Exxon de 23 anos, conforme foi originalmente emitida, para cinco anos, o máximo permitido por lei. Se a recente decisão sobre seguros for mantida, a agência ambiental terá que seguir as leis ambientais do país. Uma das ações argumenta que a perfuração viola o direito dos cidadãos a um ambiente saudável. Outras instam o governo a fazer algo em relação à queima do gás nas plataformas marítimas, uma prática chamada flaring.

Melissa tem lutado para encontrar advogados e funcionários estatais para trabalhar com ela. Dada a quantidade de empresas com as quais a Exxon e os seus parceiros, subsidiárias e fornecedores contrataram na Guiana, é difícil encontrar alguém que não esteja em conflito de interesses.

A Exxon também financiou organizações conservacionistas que possam opor-se à perfuração de petróleo no país, incluindo o Centro Internacional de Iwokrama para a Conservação e Desenvolvimento das Florestas Tropicais, a joia da coroa da conservação da Guiana e líder global em silvicultura sustentável.

Para Melissa, quem é patrocinado pelas companhias petrolíferas está ajudando-as a enganar o público. “A indústria do petróleo consegue remover todas as outras narrativas, dizendo que elas fornecem a energia para o mundo funcionar”. De acordo com a advogada, elas jamais vão dizer: ‘Estamos fritando o planeta para podermos ganhar dinheiro, e vamos certifique-se de que a energia renovável não chegue a lugar nenhum, porque isso nos colocará fora do mercado”.

Sempre que possível, a Exxon lembra ao público seus esforços sobre o críquete. Até o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, tradicionalmente conservadores e pró-petróleo, descreveram o acordo como injusto para a Guiana. A equipe de marketing da Exxon montou um vídeo no Facebook que começa – onde mais? – no estádio nacional de críquete. O primeiro minuto e meio foca no críquete antes que o líder de relações públicas da Exxon saia às ruas, escolhendo pessoas “aleatoriamente” para conversar sobre o contrato. E depois voltamos ao estádio de críquete para uma recapitulação.

É uma aula magistral na construção de narrativa. Deve estar funcionando – em março, a Exxon aumentou significativamente o seu investimento no críquete guianense, financiando um novo estádio no leste do país, com custo de US$ 17,7 milhões para construir um estádio de última geração, que sediará eventos esportivos e shows em uma região que em breve abrigará um principal porto de exportação de petróleo e gás.

“Se eles a Exxon não desse dinheiro, seriam criticados por não oferecer nada em troca de poluir o país”, diz o diretor de uma ONG ambientalista que recebeu US$ 7 milhões da Exxon Mobil Foundation. Mas é essa uma abordagem que o governo também adotou. Bharrat Jagdeo, vice-presidente da Guiana, sempre fala como o petróleo irá financiar a adaptação climática – e como o país precisa de extrair petróleo antes de zerar as emissões de CO2.

A questão de um bilhão de dólares é se a Guiana pode enriquecer com o petróleo antes de sofrer um vazamento catastrófico, do mercado petrolífero desabar ou da costa do país – onde vive 90 por cento da população – ser engolida pelo mar, algo previsto para 2030.

Em toda a América Latina e África, a indústria do petróleo conta a narrativa de que os combustíveis fósseis são a solução para a pobreza. À medida que cada vez mais países do Norte Global aprovam leis que regulam as emissões ou incentivam o abandono dos combustíveis fósseis, inicia-se a corrida para que a indústria venda o máximo de petróleo e gás possível.

No Sul Global, a mensagem é simples: ter a sua própria indústria de combustíveis fósseis significa que todos terão acesso à energia e o seu país ficará rico. Só que esta história não deu certo para nenhum país do Sul Global em décadas. A Nigéria, exploradora de petróleo desde 1960, tem o acesso mais baixo à eletricidade a nível mundial.

Melissa Janki sabe que a Guiana precisa de dinheiro para tirar o seu povo da pobreza. Ela não acredita que outro ciclo daquilo a que os economistas do desenvolvimento chamam “a maldição dos recursos” vá fazer isso. “Onde está o dinheiro do ouro? Onde está o dinheiro do açúcar? Onde está o dinheiro da agricultura? A lista é interminável porque estamos cheios de riqueza”, disse ela. “E ainda assim as pessoas neste país são pobres.”

Ela é contra mais colonialismo do Norte Global de defende que a Guiana monetize o seu valor para o mundo como sumidouro de carbono, embora não apoie a recente decisão do governo de vender 750 milhões de dólares em créditos de carbono ao parceiro da Exxon, a Hess Corporation. Os críticos dos créditos de carbono argumentam que estes só deveriam ser utilizados para compensar as emissões de setores “difíceis de reduzir” – indústrias ou processos para os quais não existem alternativas.

“Acho que é muito importante que as pessoas parem de pensar na Guiana como um país em desenvolvimento que precisa ser ajudado e comecem a olhar para nós e a dizer: ‘Uau, esses caras são um sumidouro de carbono e estão sob ameaça por causa da Exxon Mobil e de outros países. empresas petrolíferas”, diz Melissa.

Entretanto, o resultado do seu caso contra a Exxon poderá abrir um precedente que mudará completamente a conta da da perfuração de petróleo na América Latina. Quer a decisão seja mantida ou não, o caso provavelmente inspirará ações legais semelhantes, de acordo com Muffett, do Centro de Direito Ambiental Internacional.

Originalmente publicado em The Intercept

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