Há 2 anos e meio, Vitor Pinto teve seu umbigo enterrado na aldeia Condá, no Oeste catarinense. Assim os kaingang celebram o nascimento.
Agora o corpo do curumim está na terra destinada aos mortos, num caixão branco, em cova rasa. No penúltimo dia do final do ano, ele foi assassinado em frente à rodoviária de Imbituba, no litoral sul. Comia uma porção de arroz, nos braços da mãe, quando um estranho afagou seus cabelos e cortou sua garganta.
Em julho, Vitor faria aniversário, mas ao invés de festa será realizado o ritual Kikikoi, a celebração dos mortos. Até lá, Sônia, 27 anos, deseja que o homem que reconheceu como assassino do filho, Matheus Ávila Silveira, 23 anos, tenha sido condenado.
Na cosmologia kaingang, a sociedade dos vivos é eternamente recriada pelos ancestrais desencarnados. Por isso, a vice-cacique da Condá, Márcia Rodrigues, acredita que o espírito de Vitor possa trazer justiça a maior etnia do Estado, perseguida há mais de um século.
No Oeste catarinense vivem 5 mil kaingang. São os representantes legítimos de 15 mil anos de ocupação indígena naquelas terras, hoje reduzida a cinco aldeias, Xapecó, Condá, Toldo Chimbangue, Toldo Imbu e Toldo Pinhal.
Desde então, os kaingang peregrinam pelo litoral catarinense durante o verão para manter a tradição do artesanato, que vendem. Outras três aldeias do Rio Grande do Sul se unem para comercialização de cestarias em Laguna, Pinheira, Garopaba, e são constantemente expulsos. De locais públicos.
Sônia e seu marido Arcelino, 42 anos, nasceram em aldeias distintas do Rio Grande do Sul. Migraram há quase duas décadas para Condá, uma aldeia às margens do Rio Uruguai, que sobreviveu a Guerra do Contestado, mas não aos roubos de terras dos funcionários do SPI (Serviço de Proteção ao Índio), órgão governamental.
Preencher o vazio demográfico do Oeste já era um desafio para o império, que como solução estimulou três ondas pioneiras: pastoris, extrativistas e de expansão agrícola.
Se o Oeste precisava crescer, os indígenas eram vistos como entraves. Vigorou uma lógica semelhante à descrita por Jorge Furtado no curta-metragem “Ilha das Flores”. A terra é dos porcos. Se sobrar (e pouco sobra), vai para os índios.
Santa Catarina é o maior exportador de suínos do Brasil. O novo contrato assinado há dois dias com a Coréia do Sul prevê que sejam enviados 33 mil toneladas por ano para o país. A receita estimada é de R$ 430 milhões.
A diminuição do território indígena virou lei em 1850. Foram criados aldeamentos, controlados por evangelizadores e passíveis de arredamentos. O machado civilizatório pôs abaixo as florestas e seus povos em nome do progresso. A terra virou troféu de guerra.
Em 1910 o Marechal Cândido Rondon ajudou a criar o SPI, Serviço de Proteção aos Índios, com intuito de garantir um pouco de proteção aos indígenas, mas esse objetivo foi rapidamente pervertido pelos próprios funcionários, que violentamente expulsaram os kaingang de suas reservas.
O discurso de ensinar um ofício significava a exploração do trabalho gratuito ou braçal. Não havia trégua. Nem as mulheres que davam a luz tinham folga do trabalho. No Sul do Brasil, indígenas velhos, cansados ou rebeldes eram castigados pela subversão no tronco, nas solitárias e depois dos espancados, jogados em cisternas com fezes humanas.
As práticas do órgão público foram denunciadas no Relatório Figueiredo. Desaparecido por 45 anos, o documento apurou matanças e torturas dos kaingang. Supostamente eliminado em um incêndio no Ministério da Agricultura, foi encontrado no Museu do Índio, no Rio de Janeiro, com mais de 7 mil páginas preservadas, em abril de 2013. Em um dos trechos, o relator Jader de Figueiredo descreve sua indignação:
“É espantoso que existe na estrutura administrativa do país repartição que haja descido a tão baixos padrões de decência. E que haja funcionários públicos cuja bestialidade tenha atingido tais requintes de perversidade. Venderam-me crianças indefesas para servir aos instintos de indivíduos desumanos. A fertilidade de sua cruenta história registra até crucificações, os castigos físicos eram considerados fatos normais nos Postos Indígenas. Os espancamentos, independentes da idade ou sexo, participavam da rotina e só chamavam atenção quando, aplicados de modo exagerado, ocasionavam a invalidez ou a morte. Havia uns que requisitavam a perversidade, obrigando pessoas a castigarem seus entes queridos. Via-se, então filhos baterem em mães, irmão espancar irmã. O tronco, era todavia, o mais encontradiço de todos os castigos. Consistia na trituração dos tornozelos da vítima”.
A SPI tinha 130 postos em 18 estados brasileiros e foi extinta em 1967, dando origem a Funai (Fundação Nacional do Índio). Além da vida, os kaingang perderam terras em todo seu território, que compreende os três estados do sul e São Paulo.
Com as terras expropriadas, os kaingang da Condá viviam abrigados em barracos de lona no centro da cidade até a década de 90. Na época, muitos foram espancados por moradores do município. A repulsa da sociedade fez com que fossem removidos para o local atual.
A aldeia Condá tem 2 300 hectares e fica na zona rural. Cerca de 800 pessoas vivem lá. O isolamento fez com que muitos indígenas sequer aprendessem o português. Eles falam jê.
Durante o inverno produzem sua arte para lucrar no verão. Família que ganha bem, lucra no máximo R$ 800 por mês. Nos meses frios o dinheiro aperta. Os pais de Vitor torciam por boas vendas no veraneio para adquirirem uma geladeira.
Os kaingang também são alvo dos conselheiros tutelares por carregarem as crianças para o trabalho. “Como vamos proibir? Eles precisam aprender nosso ofício. Meu filho não gosta de mendigar, de pedir esmola, mas vender ele adora”, disse Sônia.
Os pais de Vitor não deixarão de trabalhar. “É isso o que fazemos, é a nossa cultura. Se me entrego deixo de pensar nos meus filhos e netos, daí eles que terão que vencer esse preconceito. Vamos continuar lutando e as pessoas terão que nos aceitar”, disse Arcelino.
Índio é vagabundo
O historiador Clóvis Brighenti explica o ódio contra a etnia justamente relacionando com o trabalho. Para os imigrantes europeus, que povoaram Santa Catarina, a terra serve para produzir, para explorar, para os kaingang é vista com sacralidade.
Assim foi construída a ideia de que os índios são vagabundos, que deixam o mato crescer ao invés de plantar. A maledicência repetida se enraizou na cultura brasileira como verdade.
“Desde a escola eu já sofria. Me chamavam de suja, de bugre, de macaca. Falavam que eu morava nos matos, que era filha de vagabundos”, lembrou Márcia.
Apesar dos movimentos de proteção aos indígenas, fortalecidos após 88, a violência contra os kaingang permanece brutal. Em 2015, sete foram atropelados em estradas gaúchas e catarinenses. Morreram sem socorro. Em setembro de 2014, uma população enraivecida do município de Erval Grande, no Rio Grande do Sul, expulsou 45 indígenas acampados às margens de uma rodovia estadual.
Com apoio da Polícia Militar, sem ordem judicial, e sem o conhecimento da Funai, centenas de moradores foram ao acampamento e os obrigaram a embarcar num ônibus com destino a Passo Fundo, a mais de 140 km de distância.
Na madrugada do dia 17 de novembro do mesmo ano, a Polícia Federal e a PM ocuparam a estrada em frente à comunidade kaingang de Kandóia, no município de Faxinalzinho, RS. Vieram 200 soldados munidos com armamento pesado, cavalaria, 70 viaturas, helicópteros e cães policiais. Foi uma caçada.
Sem esquecer os casos célebres. Em 1984, uma mulher kaingang foi encontrada morta, com um pedaço de taquara transpassando seu corpo – da vagina à boca. Ela foi encontrada nas proximidades da cidade de Tenente Portela, RS. O autor do crime, um proprietário de terras da região, confessou pouco antes de morrer a autoria. Justificou ter sido motivado pelo ódio que sentia dos índios.
No sétimo dia do assassinato de Vitor, outro indiozinho morreu, desta vez, de fome. Jadson Batista Lopes, 1 ano, foi enterrado na aldeia Kurussu Ambá, no Mato Grosso do Sul. Desde 2007, cinco crianças morreram nessa aldeia por desnutrição. O mais velho tinha 5 anos. De acordo com a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), a falta de alimentação matou quase 600 crianças indígenas nos últimos dez anos. Nas estatísticas, metade da mortalidade infantil no país é ocupada por índios, mesmo que eles representem apenas 0,4% da população.