Como a viralização do vídeo dos PMs matando dois jovens negros em SP os levou à prisão

Atualizado em 14 de junho de 2021 às 14:55
Dois policiais matando dois jovens negros em SP. Reprodução Twitter

O que seria apenas mais uma ocorrência policial na Zona Sul da cidade de São Paulo transformou-se em mais um caso simbólico da violência com a qual é exercida a autoridade policial por alguns membros da corporação.

O episódio demonstrou a importância da atitude do desconhecido que registrou o ato e fez ele viralizar no whatsapp. Sem o vídeo, não teria havido a punição aos dois maus militares.

Foi a partir desse vídeo que tanto a corporação quanto a Justiça Militar entenderam a gravidade da situação e agiram rápido tanto no afastamento dos responsáveis quanto na decretação de suas prisões preventivas.

O ouvidor das polícias do Estado de São Paulo, Elizeu Soares Lopes, em nota enviada à reportagem do DCM, ressaltou a necessidade de apurar-se tudo com rigor mas adiantou que as imagens apontam para uma possível execução. Leia abaixo:

Tudo precisa ser apurado com rigor, com o devido direito de defesa e sem prejulgamentos. No entanto, as imagens divulgadas apontam para uma possível execução. Estou cobrando continuamente o governo do Estado para que acelere o processo de instalação de câmeras nos uniformes dos policiais. Essa medida vai proteger a população e também os bons policiais. Já estou pedindo à Corregedoria da Polícia Militar que avoque a investigação do caso, e que o faça com agilidade e rigor. Também estou solicitando o afastamento imediato dos policiais envolvidos até pelo menos o fim das investigações. Respeito aos direitos humanos também é uma responsabilidade da polícia, e nada justifica execuções. É preciso acabar com a violência em todas as suas formas.

O ouvidor aponta para uma inovação que a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo vem adotando com relativo êxito recentemente: a instalação de câmeras nos uniformes dos policiais. Recentemente foi divulgado que a quantidade de mortos em ações da ROTA tinha chegado a zero após a adoção de tais dispositivos

O juiz Ronaldo João Roth, responsável pelo caso no Tribunal da Justiça Militar, em sua decisão inicial, reforçou a sensação de gravidade do caso ao fundamentar a decisão que decretou a prisão preventiva dos policiais:

“Os fatos são gravíssimos, pois ocorreu a morte de dois civis, Felipe e Vinícius, com mais de 20 disparos em cada, sendo alvejados antes mesmo que pudessem sair do veículo. Por outro lado, os próprios policiais envolvidos declararam que não ouviram disparos por parte dos civis.”

O DCM teve acesso tanto ao Boletim de Ocorrência quanto à decisão da Justiça Militar.

Neles consta que dois jovens negros, sem antecedentes criminais, Felipe Barbosa da Silva, 23 e Vinícius Alves Procópio, 19, estavam sendo perseguidos após a denúncia de que ambos haviam assaltado, com uma pistola, o consultor Claus André Gonçalves na região da Chácara Santo Antônio no último dia 9.

Quando encontrados, provocaram um acidente: ultrapassaram um sinal vermelho nas imediações da Rua Rubens Gomes Bueno, colidiram com um veículo passante e atingiram um poste elétrico.

Desse ponto em diante, há duas versões: a que foi relatada pelos policiais no DHPP (Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa), departamento da polícia na qual a ocorrência foi registrada e a que o vídeo desmente.

Pela versão dos policiais, quando da abordagem do veículo acidentado um deles deu voz de prisão a Felipe, que teria descido do carro com uma arma na cintura e, ao não atender o pedido para soltá-la, foi baleado ante ao risco de iminente agressão. Já Vinícius teria atirado no outro policial, mas o disparo falhou, ocasionando a reação que gerou sua morte.

O vídeo, por sua vez, não mostra nada disso: apenas dois policiais atirando dentro de um carro, sem qualquer sinal de resistência.

A perícia realizada nos corpos das duas vítimas fatais identificou 23 ferimentos causados por arma de fogo em Felipe e 27 em Vinícius.

Independentemente do que se observa no registro da ação dos dois policiais, esses números deveriam chamar a atenção das autoridades que lavraram o Boletim de Ocorrência: a quantidade de lesões em duas pessoas que não reagiram não poderiam ser normalizados como foram.

Outro ponto que chamou a atenção do juiz que decidiu pela prisão preventiva dos dois policiais: a arma encontrada com os rapazes não era uma pistola. Aliás, no vídeo, não se vê qualquer movimentação dos policiais para desarmar as vítimas.

Trata-se de um forte indício de tentativa de fraude processual, o que reforçou o entendimento do juízo para a decretação da prisão preventiva: os policiais teriam ‘plantado’ uma prova para reforçar a narrativa apresentada na delegacia:

“Há também a suspeita de eventual fraude processual que possa ter ocorrido ao serem esses dois revólveres localizados na posse dos infratores, implantados na cena de crime, visto que a vítima Claus André Gonçalves assevera que um dos infratores estava portando uma pistola, minutos antes do evento que resultou na morte de ambos. Além disso, um cartucho de calibre .380 íntegro foi encontrado nas vestes de Felipe e, por fim, a imagem de vídeo é clara quando mostra os dois militares se afastando do veículo, após os tiros, sem terem pegado qualquer arma das vítimas alvejadas. É imperioso ressaltar que quando a vítima foi entrevistada pelo Oficial de Permanência desta Corregedoria, no momento dos fatos, também afirmou que os indivíduos estariam com uma pistola no momento do crime.”

Uma das diretrizes da Portaria Interministerial 4226, que norteia a utilização de arma de armas de fogo por agentes da segurança pública, diz que não é legítimo o uso de armas de fogo contra pessoa em fuga que esteja desarmada ou que, mesmo na posse de algum tipo de arma, não represente risco imediato de morte ou de lesão grave aos agentes de segurança pública ou terceiros.

Não foi o que se observou na ação desses policiais. A conclusão das autoridades quando da lavratura desse boletim de ocorrência foi no sentido de conceder o excludente de ilicitude prevista no artigo 25 do Código Penal, pelo qual “entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. O excludente de ilicitude é uma situação que retira a ilegalidade de um ato diante da presença de determinados elementos. Nesse caso, a ‘legítima defesa’ retira o caráter delituoso da ação de matar alguém.

Sem o vídeo, prevaleceria a conclusão do Boletim de Ocorrência, que concluiu que “não se verifica aparente ilegalidade na conduta dos policiais militares”. A ampla divulgação do vídeo mudou completamente o quadro. “Foi divulgado, por meio do aplicativo de mensagens WhatsApp, um vídeo em que demonstra os policiais militares efetuando diversos disparos nos ocupantes do veículo pelo banco traseiro do veículo GM/Onix, sem que houvesse, aparentemente, qualquer reação por parte dos supostos criminosos, ocupantes dos veículos“, fez constar o juiz em sua decisão preliminar.

“Em análise do vídeo, a Corregedoria da PM narrou ser possível identificar dois policiais militares, os quais não se encontram abrigados, efetuando diversos disparos de arma de fogo contra pessoas no interior do veículo Onix. Além disso, notou-se não houve qualquer disparo de arma de fogo por parte dos criminosos, demonstrando muito excesso na ação policial em questão”.