Como as comunidades de troca e doação estão combatendo o desperdício no mundo

Atualizado em 7 de setembro de 2014 às 10:17

fys

Publicado originalmente na DW.

 

Um dia qualquer no Facebook. Em meio a uma avalanche de selfies, fotos do Instagram com pratos de dar inveja e sequências de bebês bochechudos, um post chama a atenção: “Doação: scanner, impressora, dois computadores, monitor.” O anúncio vem acompanhado de uma imagem dos equipamentos – tudo aparentemente em perfeito estado.

Posts como esse são cada vez mais comuns entre internautas na Alemanha. Eles costumam aparecer em diversos grupos da rede social e refletem algo maior: um notável espírito de comunidade que circula no país, e que permite se obter de graça praticamente todo o básico de sobrevivência – e até um pouco mais.

Uma das comunidades de maior sucesso leva o nome genérico Free Your Stuff (FYS, literalmente: “liberte as suas coisas”), acrescido do nome da cidade onde é feita a oferta. Em Berlim, o grupo já tem mais de 19 mil membros. Lá se encontra de tudo: televisores, geladeiras, camas, sofás, celulares, leitores de e-book e até pianos.

Ou mesmo: “Acredito que ninguém quer uma porta…? Mede uns 93 por 215 cm”, dizia um post publicado na FYS Berlim. No dia seguinte, a porta já fora levada. “Estou tão surpreso quanto vocês”, comentou o ex-proprietário.

Senso de comunidade contra o desperdício

Mas nem sempre as ofertas são tão extravagantes. A brasileira Carolina Nehring, que vive em Bonn, por exemplo, já usou uma dessas comunidades para doar livros, sapatos e bolsas. E foi lá que também conseguiu uma série de coisas interessantes, como um violão, uma escrivaninha e uma bicicleta, sua maior aquisição.

O alemão Matthieu Classen também já doou uma bicicleta, porque estava de mudança para a Holanda e não tinha como levá-la consigo. “Isso cria um certo senso de comunidade, onde é possível doar as coisas de que não precisamos mais, em vez de alimentar uma cultura do desperdício”, defende o jovem de 21 anos.

Essa atitude coincide com a filosofia simples por trás do FYS. “O grupo é dedicado a todos nós que tendemos a acumular, acumular e a preencher espaços que poderiam ser usados para algo mais interessante do que um depósito ou um coletor de poeira”, diz uma descrição na página da comunidade.

O casal de brasileiros Karin Hueck e Fred Di Giacomo Rocha também recorreu à plataforma para se desfazer de seus pertences, ao voltarem para o Brasil após um ano de Berlim. “Foi um misto de comodidade e também de querer ajudar”, justifica Karin. Ao total, eles doaram um sofá-cama, duas araras, cabides, almofadas, ferro de passar e cobertores.

A brasileira lembra que uma das formas mais comuns de doar as coisas em Berlim era apenas deixá-las na calçada. “Todo dia, trombava com colchões, sofás, televisões e até uma geladeira em bom estado, que alguém havia deixado na rua para quem quisesse levar. Deixei a minha horta [portátil] na rua no dia em que fomos embora, e em cinco minutos alguém já havia levado para casa.”

Fenômeno em expansão

O fenômeno não é uma exclusividade alemã: já existem grupos de Free Your Stuff em cidades como Nova Iorque e Barcelona. Mas, na Alemanha, observa-se uma verdadeira febre: Berlim, Bonn, Colônia, Hamburgo, Munique, Stuttgart, Leipzig, Nurembergue, Dresden, Frankfurt, Düsseldorf… É rara a cidade alemã que não tenha o seu FYS.

Karin Hueck acredita que o fenômeno tenha ligação com uma cultura, observada sobretudo em Berlim, de valorização de coisas mais baratas e usadas. E compara: “No Brasil, talvez por causa da grande pobreza da população, não existe esse fetiche. Pelo contrário, as pessoas sentem a necessidade de se afastar da aparência mais simples, valoriza-se o novo, o ‘diferenciado’, o caro e as coisas em bom estado de conservação”, avalia.

Karin dá um palpite por que iniciativas como o FYS ainda são escassas no Brasil: “Acho que algo parecido acontece de forma mais espontânea. Sempre doei muita coisa que tinha em casa, mas geralmente oferecia primeiro para a faxineira ou para os porteiros do prédio. Sinto que, por causa da desigualdade social, há sempre muita gente proxima que precisa do que estamos doando. Então não é preciso divulgar na internet ou marcar um horário para entrega.”

Para disseminar a prática, o FYS encoraja internautas do mundo todo a abrirem comunidades do gênero em sua própria cidade, tendo o cuidado, é claro, de se aterem às regras. Segundo as diretrizes, fica proibido oferecer qualquer coisa em troca de dinheiro, e posts nessa linha costumam ser deletados sem aviso prévio. A doação de animais também é vetada, justamente porque não se enquadram em “stuff“.

Escambo e compartilhamento

Numa linha semelhante, surgiram na Alemanha comunidades Change your Stuff (Troque suas coisas). Foi lá que o londrinense Guilherme Santana conseguiu uma barganha. “Eu troquei a cafeteira por um quilo de banana – saiu, literalmente, a preço de banana! Gosto de pensar que é uma cafeteira que funciona a menos no lixo. Pronto, outro ponto positivo: menos lixo também”, reflete.

Sua noiva, a curitibana Camila Collita, também já participou do escambo, levando para casa um programa Photoshop, de edição de imagens, em troca de legumes. Guilherme só chama a atenção para a “logística do movimento”: “Quando alguém anuncia alguma coisa, você precisa ser bem rápido para responder que está interessado e também ter a disponibilidade de buscar o objeto dentro da data pedida. Já perdi alguns itens por não ter tempo ou não ter como ir buscá-los.”

Outro movimento que ganha cada vez mais adeptos no país é o Foodsharing.de, uma plataforma criada no final de 2012 para o compartilhamento de alimentos entre indivíduos. “O grande sucesso do Foodsharing levou cada vez mais pessoas a se engajarem contra o desperdício e a coletarem em mercados e lojas o excedente de alimentos para redistribuição”, explica André Piotrowski, embaixador da plataforma em Bonn.

Ele comenta que a cada ano é desperdiçado cerca de 1,3 bilhão de toneladas de alimentos ainda em bom estado, sobretudo frutas e legumes, ou seja, “de 30% a 50% da produção total de alimentos”. Só na Alemanha, em 2013 a iniciativa salvou da lata do lixo 400 mil quilos de comida. “De um punhado de ativistas no início do movimento, a plataforma hoje tem cerca de 6 mil foodsaverse mais de 600 empresas doadoras”, conta André.

Livros, caronas e outros

Uma dessas “salvadoras” é Johanna Nolte. “Passo nos mercados duas vezes por semana para coletar legumes que não foram vendidos, sempre tudo em bom estado. Uma padaria também me liga para me avisar quando tem excesso de pão”, relata a jovem de 23 anos. “Separo uma parte para mim e depois ofereço a vizinhos e amigos. O restante, eu anuncio pelo Facebook.”

Esse senso de comunidade pode ser observado numa série de outras iniciativas pelo país. Para quem quer alimentar também o espírito, surgiram os Offene Bücherschränke (Estantes de livros abertas), uma ideia posta em prática em 2003, em Bonn, pela então estudante de arquitetura Trixy Royeck. A cidade hoje já conta com nove dessas pequenas bibliotecas livres, onde é possível deixar e pegar livros sem burocracia ou custo algum.

Já na área dos transportes, por exemplo, é possível economizar com caronas ofertadas na internet através de sites como o Mitfahrgelegenheit.de ou Blablacar.de. Quem anda de metrô pode até viajar de graça no Ticketteilen.org, que estimula usuários do transporte público de Berlim a compartilharem seus passes que dão direito a levar mais passageiros, fora dos horários de pico.