Por Leonardo Sakamoto no Uol.
Em resposta ao STF, que analisa uma ação que traz critérios para separar o usuário do traficante de maconha, o Senado Federal avança com uma ação para manter a punição de ambos. A proposta vai na contramão do que é feito em países “atrasados”, como Estados Unidos, Alemanha, Espanha e Portugal. Se o parlamento votar pelo retrocesso, o país terá dificuldade de reduzir o morticínio em comunidades pobres dominadas pelos tráfico.
O naco bolsonarista do Senado deseja emparedar o STF e defende a medida, criticando as drogas, enquanto muitos reviram com o dedo o gelo em seu copo de uísque.
Já o presidente da Comissão de Constituição e Justiça, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), por onde a matéria deve passar no início de dezembro, está de olho nos votos da direita em sua campanha para voltar ao comando da casa. O atual presidente, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), busca agradar o eleitorado conservador visando à disputa ao governo de Minas Gerais em 2026. E uma parcela de senadores do centrão querem os mesmos mimos concedidos aos deputados federais, que pressionaram o governo Lula até obterem ministérios, cargos e emendas.
Entende-se os processos da política, mas esperava-se da Câmara Alta do parlamento brasileiro a sensatez que já demonstrou em outros momentos recentes de nossa história. E não que incentivasse posições que afrontam a dignidade humana e colocam o Brasil na xepa das nações como moeda de troca para suas necessidades políticas e eleitorais.
Hoje a lei não define uma quantidade de droga que separa o traficante do usuário. Com isso, a polícia e a Justiça passaram a enquadrar semoventes com pequena quantidade de maconha como bandidos, mandando muitos para a cadeia – quer dizer, para a escola do crime dirigida pelas narcomilícias.
Com isso, o STF foi acionado. Foi o bastante para a grita daqueles que acham que a corte só pode julgar a constitucionalidade daquilo que lhes convém.
A ação que vem sendo analisada visa a determinar essa quantidade mínima, afastando a punição para o uso pessoal. A proposta de emenda constitucional do senador Efraim Filho (União Brasil-PB), encampada por Pacheco, considera crime mesmo a pessoa que porte uma bituca velha que produza menos de um peido de maconha.
Prevê a separação de traficantes e usuários (como vai fazer isso, ignorando o debate em curso no STF, eu não sei) e prevê penas alternativas, além de mandar usuários para tratamento. O que dá arrepios a imaginar a interpretação criativa de alguns juízes.
Descriminalizar ajudaria a reduzir a violência relacionada ao tráfico
O julgamento no STF está com cinco votos a favor da descriminalização do uso e um contra. Se a corte confirmar a tendência, teremos dado um passo, ainda que pequeno, contra a falida guerra às drogas – que produz, anualmente, montanhas de mortos pelas narcomilícias e em chacinas policiais em série – como as deste ano em São Paulo, na Bahia e no Rio – sem conseguir reduzir o consumo de psicoativos.
Pequeno passo, claro, considerando que a questão está bem mais avançada em outros lugares. Para além dos países já citados, podemos colocar também Uruguai, Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica, México e Peru, para falar apenas da nossa América Latina.
As maiores batalhas do tráfico sempre acontecem longe dos olhos das classes média e alta, uma vez que a imensa maioria dos corpos contabilizados é de jovens, negros, pobres, que se matam na conquista de territórios para venda de drogas, pelas leis do tráfico e pelas mãos da polícia e das milícias. Os mais ricos sentem a violência, mas o que chega neles não é nem de perto o que os mais pobres são obrigados a viver no dia a dia.
Considerando que policiais, comunidade e traficantes são, não raro, de uma mesma origem social e, não raro, da mesma cor de pele, é uma batalha interna. E muita gente torce não para resolver o problema em definitivo, mas para que os conflitos voltem a ser contidos naquele território, gerando falsa sensação de segurança na parte “civilizada” da cidade.
A forma como o tráfico se organizou e a política adotada pelo poder público para combatê-lo estão entre as principais razões desse conflito armado organizado. Sim, o combate ao tráfico gera mais mortos que o consumo de drogas – até porque a droga que, estatisticamente, mais mata e provoca mortes se chama álcool. Você pode comprá-la no supermercado ou ver sua propaganda na TV. Mas ela não é proibida, apenas regulada. Tal como o tabaco.
“Nixon [ex-presidente dos Estados Unidos], num discurso famoso, disse que o uso abusivo de drogas seria o inimigo publico número 1 dos EUA e lançou a guerra às drogas. Todos sabemos, independentemente de posicionamento, que de 1971 para cá, se fosse feito um ranking de quem ganhou a guerra as drogas certamente não foram as autoridades públicas”, avaliou em seu voto o ministro Alexandre de Moraes.
Não há saída para a violência armada organizada que não passe pela discussão da interrupção da atual política, o que passa pela descriminalização e legalização de psicoativos, estrangulando os recursos que chegam às mãos das organizações criminosas. E menos recursos para elas significa menos morte nas periferias.
Em seu discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas, em 2017, o então presidente da Colômbia Juan Manuel Santos criticou a “guerra às drogas” e defendeu que eram necessários outros enfoques e novas estratégias. “É preciso entender o consumo de drogas como um assunto de saúde pública e não de política criminal”, disse.
Se o Estado brasileiro quisesse resolver a bomba-relógio do sistema carcerário, descriminalizaria e legalizaria paulatinamente uma série de drogas, começando pela maconha. Isso quebraria as pernas do tráfico, reduzindo o número de jovens que hoje são enviados aos presídios para aprender a roubar e matar e desidratando o poder econômico das facções criminosas.
Assumir um planejamento legal e de saúde pública (sim, drogas deveria ser tratada sob esse enfoque e não o do xilindró) para a legalização e a regulamentação, desidratando o tráfico de drogas e o tráfico de armas através do fim de seu mercado ilegal seria importante para reduzir as mortes.
Muitos acreditam que desconectando os presídios do restante do tecido social, tornando-os uma espécie de limbo para onde vai quem atentou contra a sociedade, tudo será resolvido. O aprendizado de presos durante sua estada no inferno, por tudo o que viram e viveram, será levado para fora. E quem sofre as consequências dessa política burra somos todos nós.
A maioria racional do Senado pode ser motor de efetivação da dignidade humana, alinhando-se à resposta racional que o resto do mundo está tomando diante da maconha, ou ser o seu freio na ânsia por efetivar suas necessidades políticas e eleitorais e por bater palma para maluco dançar. De que lado ela quer estar?
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