Como derrotar e deslegitimar o bolsonarismo. Por Aldo Fornazieri

Atualizado em 28 de julho de 2025 às 6:21
O ex-presidente Jair Bolsonaro – Foto: Reprodução

Por Aldo Fornazieri, professor da Escola de Sociologia e Política e autor de “Liderança e Poder”

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o nazismo e o fascismo não só foram derrotados, mas também deslegitimados. A derrota foi em vários campos. A vitória das forças aliadas ocidentais e da União Soviética no front do Leste implicou uma derrota militar avassaladora ao Eixo, constituído pela Alemanha, Japão e Itália. A derrota foi de tal ordem que as ideologias que buscavam legitimar esses regimes ficaram sem sustentação política e militar.

O processo de deslegitimação foi impulsionado, principalmente, pela divulgação mundial das atrocidades que esses regimes cometeram contra inimigos externos e também contra populações e oposições internas. O Holocausto e as atrocidades ali praticadas foram o ponto mais alto da barbárie daqueles projetos políticos e ideológicos.

A condenação internacional dos crimes de guerra teve no Tribunal de Nuremberg um repúdio em nome do Humanismo e dos valores civilizacionais. Essa condenação estabeleceu uma interdição política, ideológica e moral ao nazismo e ao fascismo em praticamente todos os países do mundo, mesmo com suas diferentes ideologias, sistemas e formas de governo.

Na esteira desse processo, nas democracias ocidentais, fortaleceu-se um consenso de que era necessário garantir direitos aos trabalhadores, inclusão e bem-estar. Esse entendimento foi sacramentado na ideia e na construção do Estado de bem-estar social.

Com essa deslegitimação do nazismo e do fascismo, essas ideologias não morreram, mas submergiram por décadas, sofrendo até mesmo interdições legais. No final do século XX já existiam sinais de seu ressurgimento, por meio de organizações e agrupamentos extremistas de direita. Mas foi no início do século XXI que esses agrupamentos se tornaram mais assumidos, mais explícitos e mais ativos em disputas políticas, ideológicas e eleitorais. Ou seja, buscaram se relegitimar em diversas partes do mundo. Afirmaram-se com mais força e ousadia nas democracias ocidentais.

Donald Trump, Bolsonaro, Viktor Orbán, Bukele, entre outros, se tornaram expressões públicas, partidárias e eleitorais mais conhecidas de uma série de grupos, partidos, movimentos, formuladores e ativistas dessas ideologias, que assumiram várias formas matizadas. Hoje, trabalham para construir articulações mundiais, buscando maior coerência, unidade e eficácia. Muitos analistas e pensadores foram surpreendidos por esse ressurgimento, pois, com a queda da União Soviética, acreditava-se que as democracias liberais estavam garantidas indefinidamente e que aquelas ideologias extremistas estavam mortas.

Donald Trump, presidente dos EUA – Foto: Jim Watson/AFP

O Brexit, a vitória de Trump, de Bolsonaro, entre outros, e o fortalecimento dos partidos de extrema direita em vários parlamentos são não apenas fatos perturbadores, mas sinais de que existe uma crise profunda e de que o mundo está transitando de uma era política para outra, sem que esse futuro tenha qualquer garantia quanto ao seu desenho, conteúdo ou forma. É aquela velha advertência de Antonio Gramsci: “o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer”.

Hoje existe uma batalha campal pelo domínio do novo período civilizacional. Ela envolve várias frentes: valores, ideologias, tecnologias, mercados, influências, corrida espacial, big techs, comida, água, rios, mares, florestas, terras raras, ecologia, meta-humanismo, genética, biopolítica etc. As forças que estão nessa guerra campal ainda estão se alinhando, definindo seus rumos, armas e estratégias.

Na transição do século XX para o XXI, não ocorreu apenas o colapso da União Soviética e uma crise do marxismo e das esquerdas. A democracia liberal também entrou em crise. O neoliberalismo foi uma tentativa de resposta, um epifenômeno da crise do liberalismo. O neoliberalismo provocou uma tensão extrema na democracia liberal, testando seus limites.

Muitos analistas de esquerda afirmam que a emergência da extrema direita se deve à crise do neoliberalismo. Mas não é só isso: trata-se também do resultado da incapacidade do liberalismo e das esquerdas de promover saídas para a crise das democracias. Incapacidade de oferecer soluções para os desafios ecológicos, econômicos, sociais, políticos, culturais e tecnológicos. A extrema direita ressurgiu nas brechas, nas fendas deixadas pela ausência dessas alternativas, por essas incapacidades de renovar a democracia, os direitos, a igualdade e a liberdade.

Em 2022, o bolsonarismo sofreu uma derrota eleitoral, mas não política. O mesmo ocorreu com Trump, ao ser derrotado por Biden. Nem os democratas nem o sistema judiciário norte-americano se dispuseram a derrotar política e ideologicamente, tampouco a punir Trump e o trumpismo, mesmo com os acontecimentos trágicos da invasão do Capitólio.

No Brasil, a tragédia negacionista da pandemia, o golpismo recorrente de Bolsonaro durante seu governo e a tentativa explícita de golpe no final de 2022 e início de 2023 não estimularam as forças democráticas e progressistas a deslegitimar o bolsonarismo. Apenas o STF agiu com firmeza com o objetivo de derrotar o golpismo. O preço dessa inação dos democratas e progressistas é a permanência do bolsonarismo como força significativa na disputa política e eleitoral.

Mas agora, com a traição e com a chantagem que a família Bolsonaro e os bolsonaristas estão promovendo contra o Brasil, estimulando o tarifaço de Trump, surge uma ocasião extraordinária para derrotar politicamente o bolsonarismo e deslegitimá-lo moralmente. O bolsonarismo não é uma força de direita que possa ser tratada como adversária no âmbito do jogo democrático. O bolsonarismo precisa ser tratado como uma força inimiga, que precisa ser derrotada e deslegitimada.

O bolsonarismo trata as forças democráticas, progressistas e de esquerda como inimigas. Quer destruí-las. Age na democracia para destruir a democracia. É inimigo da ordem republicana e democrática. É inimigo do STF porque, hoje, ele é o pilar fundamental da garantia do Estado de Direito e da Constituição. Quer derrubar e, se possível, eliminar os ministros do STF que são os mais ativos no combate ao golpismo.

Vivemos uma conjuntura em que não é possível impor uma interdição legal ao bolsonarismo e ao extremismo de direita. Mas é possível impor uma derrota política e uma deslegitimação moral, reduzindo sua influência na sociedade e seu espaço de manobra no meio político. É esta a ocasião que a traição e a chantagem dos bolsonaristas, associados ao tarifaço punitivo e ilegítimo de Trump, oferecem. A omissão nessa tarefa pode custar caro às forças progressistas e à democracia.