Como é a vida de um policial

Atualizado em 16 de novembro de 2012 às 20:48

Todo soldado sonha mudar o mundo, ao começar. Mas depois a realidade acaba se impondo
 

Paulo Sousa a caráter

Todo policial recém-formado, aquele egresso da escola de formação, é um idealista por excelência. Por mais ingênuo que isso pareça, quase todos – em algum momento – nutrimos algum tipo de desejo de mudar o mundo, como se por si só a farda fosse solução para os problemas da sociedade.

Ao recompor de orelha minha própria trajetória na PM nesses dez anos de carreira, percebi que esse entusiasmo inicial foi sendo arrefecido pela dura realidade do quartel. Nem mesmo o mais cristalino sentimento de dever e amor à causa são suficientemente capazes de sobreviver ao árido terreno da desigualdade social, aos entraves próprios da administração, à dificuldade que é conciliar a profissão com a vida fora dela, uma realidade da qual o policial é íntimo conhecedor. Chega-se a um estágio em que, por menos que se deseje, acabamos por nos tornar ou hipócritas e meros cumpridores de ordens ou bajuladores e nefastos capachos.

Nas próximas linhas, farei um relato acerca da minha realidade como policial militar.

Antes, uma pequena introdução .

Cresci assistindo a desfiles militares. Meu pai fazia sempre questão de nos levar, meu irmão mais novo e eu, às paradas gerais de sexta-feira da tropa do então 3º Batalhão da PM, da cidade de Floriano, Estado do Piauí, onde nasci. Ficava horas pendurado na mureta do quartel, vendo aqueles homens perfilados e divididos em pelotões, os enérgicos, homogêneos e compassados movimentos de ordem unida. Ainda lembro como ficava arrepiado com o brado, a passagem da tropa em continência ao pavilhão nacional, para mim a melhor parte. A partir daqueles verdes e tenros anos, sabia que acabaria eu também calçando o coturno.

Diferente dessa imberbe lembrança, penso no gigantesco abismo entre aquela e esta realidade. Estou diante do espelho onde me fito numa última checagem antes de entrar de serviço. Mas vejo mais que os vincos “caxiasmente” (um neologismo?) delineados na farda, o cinto de guarnição e seus aprestos, o coturno devidamente engraxado; vejo o cabelo cada vez mais ralo, as escuras olheiras, um misto de leituras nas madrugadas insones e nos incontáveis serviços noturnos que tirei. Começam a pesar sobre o corpo as muitas noites que perdi “aceso”, sem sequer um breve cochilo. Tenho notado também um cansaço anormal, consequência da carga de trabalho desdobrada em serviços noturnos de coordenação de área (na viatura propriamente dita) intercalados com o cumprimento de expediente administrativo. Dez anos se passaram. Todos mudamos depois de tanto tempo.

Ingressei na Corporação em 2003, como soldado. Trabalhei 4 anos e três meses nas diversas modalidades de policiamento existentes, como policiamento ostensivo a pé, policiamento ciclístico e de rádio patrulha.  Nesse período como praça (nas corporações militares há duas classes: praças, do Recruta até o Aspirante-a-Oficial, e oficiais, do Tenente até o Coronel “full”, de três estrelas douradas). Experimentei o que há de bom e de ruim na caserna. Vivenciei quase todas as situações que um policial normalmente encontra trabalhando na área, isto é, operacionalmente, desde as mais simples como abordagens de rotinas e cumprimento de mandados de prisão até situações críticas como abordagem a veículos coletivos, tomada de edificações, troca de tiros.

Fruí também do “status” que o policial muitas vezes tem por parte dos cidadãos de bem, como senti na pele o preconceito e a discriminação tanto por parte de pessoas do povo como entre alguns graduados e integrantes do Oficialato. Comecei a pensar que nem tudo é positivo quando se trata principalmente do ambiente da caserna. Muitas vezes o soldado é alvo de injustiças, de perseguições, de preconceitos vários por parte de graduados (cabos e sargentos) e oficiais.

No meu caso, tive o desprazer de passar por duas situações de preconceito e desrespeito, uma com um sargento, outra com um tenente. Não as exporei detalhadamente por motivos óbvios, já que as partes se encontram ainda na ativa. Mas posso dizer que elas geraram em mim dois sentimentos: um de revolta, por ser caluniado abertamente ao comandante da unidade a que eu pertencia, sem sequer ter direito a me defender; o outro de humilhação, porque, como soldado, um oficial abertamente “me colocou no meu lugar” por simplesmente eu ter-lhe perguntado onde eu poderia comprar um distintivo de metal de um curso de especialização que ele tinha feito e que eu também fizera.

Decidi fazer “da queda um passo de dança”, na bela expressão do livro O Encontro Marcado, de Fernando Sabino, e em meados de 2006 prestei concurso vestibular para o CFO-PMBA, o Curso de Formação de Oficiais da Polícia Militar da Bahia.  Nota: mesmo quando fui aprovado em 11º lugar de um total de 24 vagas para policial masculino, à época, ainda assim ouvi palavras depreciativas por parte de meus pares e graduados, vaticinando minha posterior desclassificação nas demais etapas do concurso que eram os testes físico, psicológico e exames médicos!).

A partir dali decidi que teria uma postura para com os subordinados totalmente diferente da que tinha experimentado com alguns superiores meus à época. Iria  provar que poderia envergar estrelas em meus ombros sem humilhar ou destratar qualquer que fosse o policial, bom ou ruim. Decidi ser antes respeitado que temido.

Quase três anos se passaram desde que saí pelo Portão das Armas da Academia de Polícia Militar do Bomfim, em Salvador, Aspirante-a-Oficial. Embora mais maduro, deixei a APM novamente com a cabeça cheia de sonhos e aspirações, mas de certa forma com algum temor pelo desconhecido que era a realidade social que então nos esperava. Lá fora, também, me esperavam outros tipos de olhares por parte de muitos que me conheceram e com quem trabalhei: o de inveja por quem torcia por meu fracasso; o de admiração por lembrar o jovem de anos antes tido como apenas mais um na multidão, incapaz de ser alguém na vida — e que foi, fez e venceu. Diferente também a sociedade que encontrei, depois de três anos de confinamento e exaustivas horas de instrução. Apesar de outros e diferentes, ainda assim eram problemas que enfrentaria, dentro e fora do quartel.

Continua…