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Como é trabalhar numa empresa apaixonadamente detestada como a Globo?

Bete foi expulsa de um protesto na Maré

Fico aqui me perguntando se já não é hora de a Globo incluir um adicional psicológico para seus jornalistas que saem às ruas.

Isso me ocorreu depois de ver o desconcertante esculacho a que foi submetida a jornalista Bete Lucchese quando fazia uma reportagem sobre um protesto no Rio.

Alguém filmou a cena, e ela rapidamente se espalhou pela internet. Demos o vídeo no DCM, e é uma das coisas mais lidas hoje no site.

Bete tem um problema técnico, e se irrita com a equipe que a filma. Tudo normal. A surpresa foi a reação de um passante. Ele passou uma descompostura em Bete que, pelo sucesso instantâneo do vídeo, reflete o espírito de muitos, muitos brasileiros.

Uma das coisas que ele disse foi: “Vai trabalhar em outro lugar.”

Não é, evidentemente, uma coisa simples. O mercado, para a mídia tradicional, não está nada aquecido. As audiências minguam e, com elas, vão minguando os orçamentos, e o próximo passo é o encolhimento da receita publicitária.

Bete recebeu estoicamente a bofetada moral, e é preciso elogiá-la por isso.

Ela poderia ter respondido, candidamente: “Ótimo. Onde vou trabalhar, então? Na Rede Manchete? Ou você paga as minhas contas?”

O episódio é revelador de uma mudança notável na mentalidade brasileira. Não muito tempo atrás, trabalhar na Globo era motivo de orgulho. Hoje, é um embaraço – e não raro um risco, em situações emocionais como protestos.

Como ficam os jornalistas da casa?

Não é muito simples trabalhar numa empresa que é amplamente detestada. Todos sonhamos em trabalhar em lugares admirados, em que tenhamos a oportunidade de fazer coisas pelo bem público.

Mas e trabalhar num lugar abominado, como é?

Numa reunião social, pode ser um constrangimento. Na rua, como se viu agora com Bete, um pesadelo.

Mesmo repórteres prestigiados como Caco Barcellos foram intensamente hostilizados nos últimos meses, na cobertura de manifestações de protesto.

A sociedade parece cansada de muitas coisas, mas a Globo parece representar um ponto de exaustão. É como se ela fosse o símbolo supremo do atraso nacional, uma espécie de Bastilha que retarda movimentos para tornar menos desigual o Brasil.

Vistas as coisas em retrospectiva, junho de 2013 mudou o Brasil – e para melhor. A sociedade disse chega para a monstruosa exclusão que nos marca.

O Brasil teve um choque de realidade. Acordamos, por exemplo, para a dura realidade de que somos absurdamente racistas.

A última capa da revista Trip diz o seguinte: “Ser preto no Brasil é fxxx!”

Não muito tempo atrás, Ali Kamel, da Globo, escreveu um livro ufanista chamado “Não Somos Racistas”.

Hoje, uma tese destas não poderia ser defendida sem que o autor caísse em profundo e generalizado escárnio. Amarildo, Claudia, Douglas – negros, sempre negros as vítimas da violência policial.

Por precaução, os jornalistas da Globo chegaram a trabalhar sem o logotipo da casa nos microfones, nos protestos.

Isso resolve para desconhecidos. Mas e quando o repórter é um Caco Barcellos? Você faz uma plástica nele?

Na raiva, muita gente toma funcionário da Globo como uma espécie de cúmplice. Isso só complica as coisas.

Não é fácil trabalhar na Globo hoje, ficou claro na desmoralização a que Bete foi submetida. E nem foi a primeira vez. Algum tempo atrás, já a puseram para correr na Maré.

Repito: a empresa deve pensar num adicional psicológico. Você tem que ser muito zen para não se deixar arrasar pela constatação de que pertence a uma organização odiada apaixonadamente.

Paulo Nogueira

O jornalista Paulo Nogueira é fundador e diretor editorial do site de notícias e análises Diário do Centro do Mundo.

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