Como foi meu reencontro com Dostoievski

Atualizado em 17 de junho de 2011 às 9:26
O gênio dos absurdos

Reler autores é uma temeridade.

Você pode se decepcionar com eles. É como rever um grande amor. E se ela estiver velha e gorda?

Foi com alguma apreensão que comecei a ler Os Possessos, de Dostoievski. É um livro que me é caro. Me foi dado por meu tio Julio Spannó, uma das figuras fascinantes de minha infância e juventude, um aviador amador que me levava em seu tecoteco a voar pelos céus de Ribeirão Preto.

Tenho o exemplar ainda hoje, meio abatido pelo tempo.

Mas estou lendo no iPhone. No Kindle que baixei no celular.

Você lê com facilidade no iPhone, ao contrário do que diz a lenda. Letra de bom tamanho, preto sobre um fundo branco. Tudo certo. Como você anda sempre com o celular, você tem um livro móvel. Ou uma biblioteca, até.

Baixei Os Possessos com alguma apreensão.

E então, logo nas primeiras páginas, me apaixonei de novo por Dostoievski.

Os Possessos é um retrato cáustico, primoroso dos intelectuais russos que acenderam na segunda metade do século XIX as chamas da Revolução que em 1917 derrubaria o czarismo e instalaria o comunismo.  Os revolucionários de Dostoievski são vaidosos, frívolos, esnobes – e avarentos. “Como homens que pregam o fim da pobreza podem ser tão mesquinhos, tão apegados ao dinheiro?”, pergunta Dostoievski.

O livro é uma espécie de vingança. Dostoievski militou por algum tempo no movimento anticzarismo e teve problemas. Foi preso e chegou a ser condenado à morte. Simularam sua execução por fuzilamento. Só depois Dostoivski soube que fora indultado. Este episódio – a prisão e o falso fuzilamento – apareceriam em momentos capitais de sua obra.

Em Os Possessos, gosto dos absurdos de algumas cenas. É incrível a mestria dele em não deixar parecer, em nenhum momento, que exagerou no absurdo.

Um jovem e cruel revolucionário é quem melhor se presta a isso. Uma vez, ele beija à força na boca a mulher de um homem. Choque. Alguém pergunta a ele por que fizera aquilo. Ele diz que vai responder, mas baixinho, na orelha do homem que trouxera a questão. Ele faz que vai falar e, simplesmente, morde o homem. Fica momentos com os dentes na orelha do coitado.

É o gesto gratuito e surpreendente que todo escritor persegue – mas poucos com sucesso. Em geral atitudes como aquelas parecem forçadas. É raro o acerto. O último caso positivo que me chamou a atenção foi um conto do escritor inglês Kingsley Amis. Uma repórter vai entrevistar um veterano poeta e ele de repente pergunta a ela: “Do you fuck?” Fico ligeiramente vermelho ao traduzir. “Você fode?” Ela diz que sim, com o marido, e o narrador nota que aquilo era parcialmente verdade.

Foi bom o reencontro com Dostoievski.

Para continuar com a imagem romântica, foi como se depois de tantos anos eu revisse um velho amor e percebesse, assombrado e extasiado, que o tempo – esse padrasto sinistro — não lhe fizera os estragos que faz.