O primeiro episódio da adaptação manca para a TV do filme sobre Tim Maia foi retirado do site oficial na Globo na sexta passada. O segundo episódio não foi ao ar ali. É a primeira vez em que isso acontece com esse tipo de atração.
Como você já sabe a essa altura, o longa tem várias sequencias sobre as dificuldades de Tim em encontrar o amigo tijucano Roberto Carlos, ex-parceiro do conjunto Sputniks. Roberto, em 1966, havia se tornado o rei da Jovem Guarda e Tim voltara quebrado dos EUA, pedindo uma força.
Na versão para a televisão, Roberto saiu bonito. Testemunhas da história foram chamadas para falar, dando o tom de um “docudrama”. RC mesmo dá um depoimento livrando a própria cara, explicando que ajudou, sim, Tim Maia.
O pacote cinema e tv provocou uma enorme confusão por causa do conjunto de patacoadas. O diretor Mauro Lima reclamou, no Instagram, do que chamou de “subproduto”. Deu para trás em seguida na Folha, muito agradecido à mutilação (a mulher dele, Alinne Moraes, é a atriz principal do longa). Não faz sentido ele reclamar. A produtora é a Globofilmes. Sem sutileza alguma, as cenas de noticiário da internação de Tim após um show em Niteroi — ele morreria uma semana mais tarde — levam, todas, a marca d’água da Globo.
Nos créditos, a obra aparece como baseada em “Vale Tudo”, de Nelson Motta. Há cenas, porém, tiradas de “Roberto Carlos em Detalhes”, a biografia censurada de Paulo César de Araújo. Uma delas é a do dinheiro amassado e atirado ao chão para Tim pelo empresário de RC.
Mas o que ficou explicitada é a relação incestuosa entre a Globo e seu contratado Roberto Carlos. RC tem na emissora um general fiel na tentativa — inútil, de resto — de higienizar sua trajetória.
Como funciona essa “parceria”?
Paulo César de Araújo dá uma boa amostra desse modus operandi em “O Réu e o Rei”, livro sobre os bastidores de sua batalha judicial com seu ídolo transformado em inimigo.
Em 1974, Roberto assinou um contrato de exclusividade com a TV Globo para um programa anual que existe até hoje e é tão certo, na vida, quanto a morte. Foi o início de uma bela amizade.
Era duplamente vantajoso, escreve Paulo César: “Se, no tempo da Record, ele ganhava relativamente pouco para aparecer muito, a partir de seu contrato com a Globo ele ganharia muito para aparecer pouco, evitando o desgaste da superexposição depois de uma década de absoluto sucesso”.
RC teve na Globo o seu Pravda, só com notícias a favor. Já havia sido assim com a Bloch Editores. Ele passava notas oficiais às publicações da casa e tinha um tratamento privilegiado. Quando a Polícia Federal apreendeu seu iate Lady Laura III, por exemplo, a revista Manchete veio com a chamada: “Maré mansa para o rei Roberto Carlos: ‘Quem não deve não teme’”. No divórcio de Nice, em 1978, a capa era: “Roberto Carlos e Nice: Nossa separação é um ato de amor” (!??).
Em 2006, RC entrou com uma ação para tirar a biografia de circulação. “A Globo não o decepcionou. Foi realmente seu porto seguro, o seu para-raios. No limite da irresponsabilidade jornalística, a emissora calou o réu e deu voz apenas para o rei”, diz Araújo.
Dois programas marcaram entrevista com o escritor: o Fantástico e o Altas Horas. Maurício Kubrusly representaria o dominical. “Na manhã do dia combinado, a produção do Fantástico me ligou adiando a entrevista. A justificativa foi que a crise nos aeroportos do país teria impedido Maurício Kubrusly de se deslocar de São Paulo para o Rio.”
Houve outro adiamento até o não definitivo, com a desculpa de que o assunto tinha saído da pauta. Mesma coisa no Altas Horas.
“Quando em janeiro do ano seguinte Roberto Carlos confirmou a ameaça, entrando na Justiça contra mim e a editora Planeta, isso foi assunto de toda a mídia nacional — menos da TV Globo, que insistia em negar outro item dos seus ‘princípios editoriais’: o de que ‘não pode haver assuntos tabus. Tudo aquilo que for de interesse público, tudo aquilo que for notícia, deve ser publicado, analisado, discutido’. (…) Somente quando a proibição parecia definitiva a capa da biografia foi finalmente mostrada na tela da Globo. A fatura parecia liquidada”.
Até que veio o artigo de Paulo Coelho na Folha, “muito chocado” com a “atitude infantil” de RC. O Fantástico ligou novamente, escalando Patrícia Poeta para uma conversa na casa de Araújo. Na manhã do dia combinado, telefonaram suspendendo o papo.
“Roberto Carlos foi aconselhado por seus assessores a dar uma entrevista para o Fantástico e se explicar de uma vez por todas. A condição foi a de que o artista não podia ser contraditado. Ou seja, a palavra dele e de mais ninguém”, relata. Cid Moreira, irônico, apresentou o biógrafo como alguém que “se diz fã do rei desde criancinha”.
“Por tudo isso, ao fim de seu show comemorativo de cinquenta anos de careira, no Maracanã, Roberto agradeceu não apenas ao público e aos patrocinadores Itaú e Nestlé, mas também à Rede Globo de Televisão ‘pelo apoio e parceria ao longo de todos esses anos’”, diz.
“O Réu e o Rei” tem um trecho premonitório. Em 1992, Tim Maia recebeu Paulo César de Araújo para uma entrevista. A certa altura, lembrou do velho camarada. “Roberto Carlos não vai se ver nunca livre de mim. Quando a gente morrer, lá em cima eu vou dizer: ‘Como é que é, Roberto!’”