Só quem trabalhou com José Serra tem o direito de dizer que viu o inferno em vida: o Careca, como o senador tucano era carinhosamente chamado no PSDB, é a própria encarnação do tinhoso.
Mas justiça seja feita. Serra teve o seu momento ternura: foi em 2004, quando um pequeno grupo de correligionários tirou ele de casa – estava hibernado desde a derrota para Lula dois anos antes – e o convenceu a tentar a sorte na disputa pela prefeitura de São Paulo.
Não tinha nada a perder: havia chegado ao segundo turno contra Lula e sua votação na capital superou a do petista. Eleito, poderia fazer da cidade trampolim para voos mais altos.
Pediu para ir às ruas.
Passou um sábado inteiro zanzando pelos bairros da zona Sul. Cortou o cabelo num desses barbeiros que ainda amolam a navalha no couro. Comeu salgadinho em balcão de boteco. Gostou da brincadeira.
– Anuncia que vou ser candidato, mandou dizer.
O bom humor acabou aí.
E azedou de vez quando o sócio PFL anunciou quem seria o vice para compor a chapa: Gilberto Kassab.
No início da campanha, o indicado do PFL foi aconselhado a não acompanhar Serra nos eventos públicos. ‘O Careca não quer ver o cara nem pintado’, era o que se ouvia entre os militantes tucanos.
Kassab usou sua habilidade e foi chegando aos poucos.
Com a vitória assegurada, submergiu.
– Meu papel é não causar problemas, dizia a aliados, até surgir como o garoto prodígio do então prefeito: homem de confiança, conselheiro político e, cereja do bolo, coordenador financeiro de campanhas junto com o parceiro Guilherme Afif Domingos.
Assumiu a prefeitura quando Serra renunciou para concorrer ao governo do Estado em 2006.
Foi reeleito em 2008 e o que fez? Usou a máquina pública para fundar o seu próprio partido, o PSD.
Tentou ser governador, concorreu ao senado e acabou se conformando em fazer aquilo que sabe: usar o PSD como moeda de troca nas negociações com os mandatários de plantão.
Foi assim com Dilma, em cujo governo comandou o ministério das Cidades e com Temer, quando respondeu pela pasta da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações.
No governo Doria, em SP, vive uma situação inusitada.
É secretário licenciado da Casa Civil, por conta das denúncias que responde no inquérito da Lava Jato, e tem na cadeira um apadrinhado de sua inteira confiança: Antônio Carlos Malufe, o conhecido Malufinho.
Kassab reapareceu na cena política nesta semana ao assumir a negociação do Centrão com Bolsonaro e logo abocanhar um cargo no primeiro escalão: o presidente aceitou recriar o ministério das Comunicações e nomeou um deputado do PSD do Rio Grande do Norte, Fabio Faria, que é também genro de Silvio Santos.
Kassab desconversa e diz que não interferiu na indicação – da mesma forma que dizia quando forçou seu nome como vice na chapa de Serra.
Seu PSD tem hoje 11 cadeiras no Senado e 36 na Câmara dos Deputados.
Quando criou o partido, foi logo anunciando que o viés ideológico não seria de direita, de esquerda nem centro.
Para bom entendedor poucas palavras bastam: seria um aglomerado político para ocupar os espaços no que chamamos de governos de coalizão, especialmente nos períodos em que os mandatários, como Bolsonaro agora, estão sangrando e mais dependem do toma lá dá cá da política.
Kassab é um craque. Contaminou o PSDB e transformou o partido de Serra num sabonete vagabundo que ninguém quer.
Ajudou a organizar o golpe contra Dilma respondendo pelo ministério da petista.
Consumada a queda, no dia seguinte era nomeado ministro de Temer.
Pôs seu preposto na Casa Civil de Doria e agora organiza a ocupação do governo de extrema-direita de Bolsonaro.
Todos aqueles que lhe deram espaço sentiram na pele o drama de se aliarem a alguém tão vulgar ideologicamente.
Serra vaga no seu ocaso político desprestigiado feito cocô de cavalo de bandido.
Dilma tem de conviver todos os dias com o gosto amargo da traição e Temer sofre as consequências de quem passou para a história como um golpista usurpador.
Sobre Bolsonaro, é preciso dizer que não tem lá grandes opções.
Vendeu uma coisa e não entregou: sua ‘nova política’ era uma farsa e todo mundo sabia.
Não lhe restou outro caminho senão sentar no colo da velha raposa. Como Serra quando quis ressurgir das cinzas.