Como lidar com fundamentalistas hoje: um artigo de Slavoj Zizek

Atualizado em 10 de janeiro de 2015 às 10:02

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Publicado no Unisinos.

 

Agora que estamos todos em estado de choque, depois da carnificina nos escritórios de Charlie Hebdo, é o momento certo para encontrar coragem para raciocinar. Naturalmente devemos condenar sem ambiguidade os homicídios como um ataque contra a essência da nossa liberdade, e condená-los sem nenhuma distinção. Mas este sopro de solidariedade universal não é suficiente. O raciocínio, o pensamento, de que falo não tem absolutamente nada a ver com as relações atribuídas ao valor deste crime (o mantra do “quem somos nós ocidentais, que cometemos massacres terríveis no terceiro mundo, para condenar atos como estes?”).

E existe ainda menos a fazer com o medo patológico de tantos progressistas liberais ocidentais de se maquiar com a islamofobia. Para estes falsos progressistas, qualquer crítica ao Islã é identificada como expressão da islamofobia ocidental: Salman Rushdie foi acusado de ter provocado gratuitamente os muçulmanos, e então é o responsável (em parte) do fato que o condena à morte, e assim por diante.

O resultado dos posicionamentos do gênero é aquele que podemos esperar nestes casos: mais os progressistas ocidentais revolvem o seu sentimento de culpa, mais são acusados pelos fundamentalistas islâmicos de serem hipócritas que buscam esconder o seu ódio pelo Islã. Essa constelação reproduz à perfeição o paradoxo do superego: mais obedeces àquilo que o outro espera de ti, mais te sentes culpado.

Na prática, quanto mais tolerarem o Islã, mais forte será a pressão sobre vocês… Há muito tempo atrás Friedrich Nietzsche percebia que a civilização ocidental estava avançando para o Último Homem, uma criatura apática, sem grandes paixões ou grandes funções. Incapaz de sonhar, cansado da vida, não assume riscos, procura somente conforto e segurança, uma manifestação de tolerância recíproca: “Um pouco de veneno a cada pouco, para ter sonhos agradáveis. E muito veneno no final, para uma morte agradável”.

De fato pode parecer que a brecha entre o primeiro mundo permissivo e a reação fundamentalista contra este, coincida cada vez mais com a contraposição entre uma vida longa e satisfatória, cheia de bem estar material e cultura, e uma vida dedicada a alguma causa transcendente. “Os melhores” não são mais capazes de se empenhar até o fim, enquanto “os piores” se empenham em um fanatismo racista, religioso, sexista.

Mas os terroristas fundamentalistas correspondem exatamente a essa descrição? O que evidentemente falta é uma qualidade que é fácil discernir em todos os fundamentalistas autênticos, dos budistas tibetanos aos Amish americanos: a falta de ressentimento e inveja, a profunda indiferença para o modo como vivem os que não possuem a mesma crença. Se os ditos fundamentalistas da atualidade estão verdadeiramente convencidos de terem encontrado o caminho para a verdade, porque devemos nos sentir ameaçados pelos que não acreditam, porque devemos invejá-los?

Quando um budista encontra um hedonista ocidental não o condena de fato. Se limita a observar pacificamente que a busca pela felicidade do hedonista é contrária ao seu pensamento. Ao contrário dos verdadeiros fundamentalistas, os pseudo fundamentalistas terroristas são profundamente irritados, intrigados, fascinados pela vida pecaminosa dos que não possuem tal crença: se tem a sensação que combatendo o pecador estão combatendo a sua própria tentação ao pecado.

O terror do fundamentalismo islâmico não está arraigado na convicção dos terroristas da sua própria superioridade, em um desejo de preservar a própria identidade cultural e religiosa do furioso assalto da civilização consumista mundial. O problema dos fundamentalistas não é que se sintam inferiores a nós, mas ao contrário, que eles mesmos se consideram secretamente inferiores. É por isso que quando os tranquilizamos, cheios de condescendência e do politicamente correto, que não nos sentimos absolutamente superiores a eles, não fazemos outro que os inferiorizar ainda mais e alimentar o seu ressentimento. O problema não é a diferença cultural (o seu esforço para preservar a própria identidade), mas ao contrário, o fato que os fundamentalistas já são como nós, que secretamente tem já interiorizado os nossos parâmetros e medem a si mesmos com base nisso.

O fundamentalismo é uma reação – uma reação falsa e mistificadora, naturalmente – contra um defeito real do liberalismo, e é por isso que o liberalismo o gera repetidamente. Para que essa tradição fundamental possa sobreviver, o liberalismo necessita de auxílio fraterno da esquerda radical. É a única forma para derrotar o fundamentalismo, cortar a grama sob seus pés.

Pensar em resposta aos homicídios de Paris significa colocar de lado a complacência autocelebrativa do liberal permissivo e aceitar que o conflito entre a permissividade liberal e o fundamentalismo definitivamente é um falso conflito. Aquilo que Horkheimer disse sobre o fascismo e o capitalismo, que quem não está disposto a falar de maneira crítica do capitalismo não deve contestar o fascismo, seria aplicado também ao fundamentalismo da atualidade: quem não está disposto a falar de maneira crítica da democracia liberal não deveria contestar o fundamentalismo religioso.