Como a literatura vê a intervenção. Por Marcius Cortez

Atualizado em 20 de fevereiro de 2018 às 17:09

POR MARCIUS CORTEZ, publicitário e escritor.

Nem sei se sou herdeira da escritora Carolina de Jesus, mas me
sinto como se vivesse num quarto de despejo. Não mando mais,
nem eu nem minha família, no único lugar onde posso morar, nesse
barraco tosco perto do céu com vista para o mar e para o Rio sob a
mira da morte.

É visível, qualquer um vê que o verde da bandeira do Brasil
sumiu dos uniformes dos soldados. Agora eles estão vestidos com
o tecido tom sangue e roxo cadavérico.

Não durmo mais. Quando amanhece, ponho a cara na janela
despedaçada por um tiro de arma pesada e respiro o pesadelo.
Está faltando luz, na Rocinha falta energia várias vezes ao dia.
Uso velas. Virou rotina como os tiroteios e os gritos dos prisioneiros.
Somos todos prisioneiros.

Penso que nunca mais foi rever o êxtase. Ontem tive uma visão
muito estranha. Vi micos suspensos no ar como se levitassem no
interior de uma ruína buscando desesperadamente a saída de
emergência.

Aqui na Rocinha tem outras pessoas que gostam de escrever.
Dizemos que fazemos o relato da destruição. Antes eu imaginava
que podia pegar nas estrelas com a mão, hoje nem mais conversar
com elas é possível.

Foi me tirado todo o sentido que tinha para a vida. Amor, ora não
me façam rir. Só me permitem vagar entre as sombras.
A fonte secou, tudo secou. Ninguém vai me impedir de afundar. E
assim será daqui por diante.

Todos que escrevem comigo ecoam nas suas palavras que a
literatura da intervenção é o relato da terra saqueada. O Rio, o Rio
virou um pântano de lama.

Nunca mais esquecerei a cena. Eles atiraram para matar. Nunca
mais esquecerei os mortos enterrando os mortos.
Não consigo mais escrever. Eu vi o inferno. O povo engolindo
fogo e sendo obrigado a permanecer em silêncio.