The Law of Gerson: como Martin Scorsese redimiu um escroque real com “O Lobo de Wall Street”

Atualizado em 27 de outubro de 2014 às 11:45

 

“O Lobo de Wall Street” é um Martin Scorsese menor. Não só porque podia ter meia hora a menos. Ainda assim, continuaria pior que “Os Bons Companheiros” ou “Os Infiltrados”. Tem todos os elementos de seu cinema: um grupo de homens se comportando mal; drogas (provavelmente se cheira ali o equivalente a toda a cocaína do helicóptero dos Perrellas); muito sexo; boas atuações; bons diálogos; boa trilha sonora.

Qual o problema, então?

O problema é a glorificação total e irrestrita de um tremendo picareta. Uma história contada pela metade, cheia de som e fúria. “O Lobo” foi apontado por muitos críticos como uma grande peça de propaganda de um pilantra chamado Jordan Belfort.

O filme é baseado em seu livro de memórias. Belfort prosperou com fraudes financeiras. Começou a carreira vencendo ações baratas de companhias pequenas (penny stocks) para investidores com poucos recursos. Vendedor brilhante, não demora muito para montar uma corretora com os amigos em Wall Street. Entre 1989 e 1997, obteve lucros absurdos, mesmo para os padrões de Wall Street. Definia-se como um “animal movido a ambição”.

Fez sua fortuna enganando seus clientes — completamente ausentes do filme. Só vemos Belfort (Leonardo DiCaprio) e seus sócios se divertindo como uma banda de rock em seu caminho para a fama. É impossível não se deixar seduzir por DiCaprio, carismático até quando enche a cara de Quaalude, um calmante retirado de circulação por seus efeitos estupefacientes, e se arrasta babando até sua Lamborghini.

Ele se casa com uma loira belzebu, compra uma mansão e um iate e dribla o FBI até o limite. Uma hora era inevitável que a casa caísse.

Levou muita gente à bancarrota, antes de ele mesmo quebrar. Oficialmente, 1500 almas que tomaram chapéu. Muitas delas estão dando as caras. Alfred Vitt, de 81 anos, contou como a coisa funcionava para o jornal inglês The Telegraph: “Começou com um telefonema deles me oferecendo ações boas, e então depois que eu estava viciado em investir eles passaram a me vender nada, só um monte de vento”. Vitt perdeu, em suas contas, 250 mil dólares.

“É hora de parar de glorificar os pilantras de Wall Street”, afirma Diane Nygaard, advogada de vítimas de Belfot. “Eu acho que o filme deveria se chamar ‘Minhas Aventuras com o Dinheiro dos Outros’. Você pode roubar mais com uma caneta do que com uma arma”.

O Belfort verdadeiro está dando palestras motivacionais sobre sua “superação”.  O sucesso de “O Lobo de Wall Street” lhe trouxe uma batelada de novos convites. Faz sentido. É quase um anúncio de seus serviços.

O próprio DiCaprio chegou a gravar um vídeo promovendo as palestras de Belfort, no qual declara que ele é “um exemplo reluzente das qualidades transformadoras da ambição e do trabalho duro”.

Scorsese conta uma fábula amoral pela metade. Oliver Stone, com os dois “Wall Street”, especialmente o primeiro, falou da desgraça que gente como Belfort causa. Seu Gordon Gekko (Michael Douglas) se vestia de maneira impecável, tinha bom gosto, era bonito, andava de limusine — mas você não tinha dúvida de que se tratava de um canalha (embora Douglas tenha, ainda hoje, de explicar isso para alguns fãs mais tontos).

Jordan Belfort ainda deve milhões de dólares ao Fisco e aos incautos. Ele chegou a prometer que vai pagar o débito com o que arrecadar com as vendas de seu livro, os direitos do longa e as conferências. Acredita quem quiser. Nos últimos quatro anos, segundo a Justiça americana, quitou apenas 243 mil dólares do papagaio, apesar de ter recebido 1,7 milhão pelos livros e pelo filme.

Os admiradores doentes de Martin Scorsese dirão que “O Lobo de Wall Street” é uma obra-prima. Nem Scorsese concordaria, mas é a vida. O gorducho Jonah Hill, que concorre ao Oscar de coadjuvante, está ótimo como o doidão de sexualidade duvidosa Donnie Azoff (o tipo é baseado em Danny Porush, um escroque que também puxou cana por lavagem de dinheiro, entre outros crimes).

Em alguns trechos, o diretor tenta explicar um pouco da complicada matemática que levou seu protagonista a se tornar um milionário em cima de golpes. Não funciona. O que resta é mais um retrato clichê de um sujeito que saiu do nada para o topo do mundo. Ele enfrenta um vilão poderoso — o governo americano. As pessoas em quem deu aplique, e que no final são responsáveis por sua fortuna, ficam invisiveis.

Jordan Belfort, o lobo real, foi redimido por Scorsese. Está negociando para ter seu reality show. Os trouxas, agora, o verão pela TV.

 

O verdadeiro Belfort
O verdadeiro Belfort