Veneza é velha e alegre como uma tia bêbada: um relato de viagem

Atualizado em 22 de fevereiro de 2013 às 10:35

O encanto caótico da terra de Vivaldi.

Colors of Venice,  Italy
Você tem que ir para lá

“PARA ONDE O SENHOR VAI?” Estou em Veneza, e acabo de descer do vaporetto, o barco que leva você pelos canais da cidade. É minha primeira vez, e ao colocar os pés em Veneza à 1 hora da manhã, na estação mais próxima do hotel, estou simplesmente perdido. A ajuda cai bem.

Mesmo?

É um homem de alguma idade entre 30 e 50 anos. Peso médio, tamanho médio, a pele queimada de sol, o sorriso fácil dos malandros e desocupados. Fala um inglês fluente. Diz que sabe onde fica o hotel quando lhe pergunto. Vai andando e pede para eu segui-lo. Obedeço.

Mas preocupado.

Sair de Londres é sair de uma zona rara de conforto. Você anda sem medo pelas ruas, mesmo quando elas estão desertas e escuras. Uma vez, em Leicester Square, dois grupos de jovens se desentederam diante de mim num começo de madrugada. Não houve tempo para alguém dar ou levar o primeiro soco. A polícia se apresentou com autoridade em instantes e os briguentos se uniram na fuga.

gondola
São 400 gondoleiros em Veneza

Não sei se o guia improvisado de Veneza é um gatuno. Não deve ser. É uma cidade turística, bem policiada. Mas minha tranquilidade ao andar na rua cai consideravelmente quando não estou em Londres. Num certo momento, ele pega minha mala com rodinhas e caminha numa velocidade que me parece alta. Com a delicadeza possível, pego de volta a mala. Se ele corresse com ela pelas ruas estreitas e escuras de Veneza eu jamais o pegaria naquele deslumbrante labirinto medieval de paredes descascadas. Meu laptop está na mala. Essa é minha maior preocupação.

No percurso, ele conta que é de Bangladesh, uma informação que, sinceramente,  não aplaca minha inquietação. Afinal, depois de uns dez minutos, estamos diante do hotel. Meu receio se mostrara infundado. Agradeço e tiro uma nota de 5 libras para recompensá-lo. Ele recusa.

Fui tão mau juiz assim?

Sim. Errei ao desconfiar dele e errei de novo ao lhe dar 5 libras. “O dobro”, ele diz. Não discuto. Tiro uma nota de 10. “Nota inglesa?” Sim, não tinha ainda me munido de euros. “A gente se vê por aí”, ele diz, e se esgueira pelas ruelas venezianas.

Bem, estou enfim em Veneza. São e salvo. Um tanto e cansado, depois de viajar praticamente o dia todo. O vôo entre Londres e Veneza é rápido. Menos de duas horas. Mas ir pela Ryanair singnifica partir e chegar a aeroportos distantes e, para a companhia, mais baratos. Coloque aí mais ou menos uma hora de ônibus tanto para embarcar quanto, depois, para se instalar no hotel.

Viajar pela Ryanair é ficar mais tempo em ônibus que no avião em si em troca de passagens baratas. É também ouvir uma corneta triunfal quando é cumprido o horário na decolagem ou na aterrissagem. E é também devolver a revista de bordo, que é oferecida no começo do vôo pelo pessoal de bordo. Ao contrário de muita gente, não me sinto gado na Ryanair. Você pode comprar passagens a preço de amendoim se se programar com alguma antecedência.

Bons restaurantes
Bons restaurantes

Veneza é linda, barulhenta, caótica em sua decadência que, a rigor, já se arrasta por séculos. Você come bem, é claro, mas não melhor do que em São Paulo. Comi massa todos os dias em Veneza, e não encontrei um só prato que pudesse classificar como um dos mais gostosos de minha vida.

Você não vai a Veneza para comer, ou para fazer compras, ou para ouvir música clássica, ou mesmo para andar de gôndola, embora provavelmente vá fazer tudo isso. Você vai a Veneza porque Veneza é Veneza, ponto. Você tem a sensação de que seu roteiro de viajante está incompleto se ele não inclui Veneza, e este é um atributo raríssimo entre as cidades do mundo.

Veneza é velha e alegre como uma tia bêbada. Os italianos são o povo mais alegre da Europa. Mesmo os garçons estrangeiros acabam se tornando italianos em sua afabilidade estridente. Veneza é informal. Você não vai fazer um papelão se num concerto de música clássica aplaudir na hora errada. É um fato comum em Veneza, uma vez que a platéia é quase toda composta de turistas.

Em Londres vão olhar você com cara de repulsa se você der um “bravo!” numa pausa dentro de uma música. Em Veneza, provavelmente a platéia o acompanhará, na dúvida. Numa homenagem a Vivaldi a que fui, o violinista principal, delicadamente, dava um jeito de esticar o braço em aplausos fora de hora para deter nosso entusiasmo ignaro. Em Veneza não é crime o aplauso turístico e leigo para a afinação dos músicos da orquestra.

Os franceses são arrogantes, os ingleses reservados, os russos grosseiros, os alemães rígidos. Os venezianos são flexíveis como as cordas de uma harpa. Um gondolier vai dizer a você que existem três tipos de passeio. O curto (80 euros, ou 240 reais), o médio (100) e o longo (120).
“Muito caro”, eu disse a um deles, de 30 e poucos anos. “Há também o curtíssimo”, ele improvisou. Sessenta euros. Aceitei. Uns trinta minutos na gôndola. É um tempo suficiente para você tirar foto e poder dizer depois que andou de gôndola.

São 400 os gondoleiros em Veneza, ele me conta. Cada gôndola nova custa uns 100 mil reais e dura mais ou menos cinco anos. São dois os fabricantes.  Ele virou gondoleiro por causa do pai, ainda ativo, e diz que tirar habilitação para dirigir gôndola não é nada fácil. Pergunto sobre os turistas. “Os americanos eram os melhores, mas agora acabou o dinheiro”, ele diz num bom inglês. Os chineses, segundo ele, são “muito ruins”, o que significa que são pãos duros. Os melhores são os espanhóis e os alemães. “E os brasileiros?”, arrisco. “Ok”, ele responde, seco.

Veneza é a cidade de Vivaldi. No museu de Vivaldi, você tem boas informações sobre ele. As Quatro Estações, está dito ali, são a peça clássica mais executada em todos os tempos. Num segundo lugar distante, leio ali, vem a Nona Sinfonia de Beethoven. Mas Vivaldi viveu pobre e morreu pobre. Não havia ainda direitos autorais em sua época. Mesmo para alguém que, como eu, se educou musicalmente com guitarras distorcidas e baterias ensurdecedoras, ouvir a Primavera de Vivaldi em Veneza é uma experiência sonora única. Você ouve e leva aquele momento efêmero com você pelo resto de seus dias.

De cidades como Berlim e Estolcomo você sai com a certeza de que vai retornar. Não é o caso de Veneza. Uma vez está bom. Mas, paradoxalmente, você pode passar a vida sem ir nem a Berlim e nem a Estolcomo sem se sentir de alguma forma vazio.

Com Veneza não.

Você tem que ir para lá.

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