Como o governo de SP subverteu o conceito de civilização

Atualizado em 4 de novembro de 2014 às 12:49

Publicado no site da Superinteressante, da qual o autor, Alexandre Versignassi, é redator-chefe.

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Não foi a humanidade que inventou a hierarquia. Qualquer espécie que vive em bando está dividida entre líderes e subordinados. Matilhas de lobos caçam seguindo os comandos do lobo-chefe. Chimpanzés se aliam para matar o macho alfa do grupo, quando sentem que podem usurpar o trono. Humanos que vivem em estado de barbárie, como crianças de condomínio, também elegem seus líderes. O chefe mirim do prédio pode ser a criança mais forte, ou a mais carismática. Ou, mais usual, a que é mais forte justamente por ser a mais carismática. Ninguém ensina isso para a molecada, nem para os macacos, nem para os lobos. A formação de grupos com líderes e subordinados é tão natural entre as coisas vivas quanto a formação de nuvens é entre as moléculas de vapor d’água suspensas no ar.

Mas a formação de cidades, estados, governos, não. Não é algo que brota da natureza. É algo que inventamos justamente para controlar a natureza. Até por isso a primeira civilização propriamente dita, com cidades e governos, surgiu num lugar onde a própria natureza nunca colaborou muito: a Mesopotâmia, onde hoje fica o Iraque.

Começou quando os proto-iraquianos hackearam o solo. Em estado natural, só 0,1% da biomassa de um terreno consiste de algo digerível por humanos. O resto das plantas e dos animais são ou veneno ou coisas que o nosso corpo não sabe converter em nutrientes (caso do capim, que exige quatro estômagos e muita ruminância para se transformar em calorias).

Mas quando a agricultura apareceu, você sabe, as coisas mudaram de figura. Ao selecionar e cultivar as plantas mais interessantes para o nosso estômago, os caras fizeram a quantidade de biomassa por metro quadrado saltar daqueles 0,1% para coisa de 90%. Além disso, a maior parte dessas plantas interessantes eram grãos (trigo, cevada). Grãos digeríveis na forma de pão e de cerveja, armazenáveis na de farinha e, de quebra, conversíveis em ração para animais. Aí pronto, a natureza estava oficialmente hackeada, e domesticada: a vida nômade, com a obrigação de matar um bisão por dia, se tornava obsoleta. E a humanidade ganhava tempo livre para desenvolver a mais profunda das formas de arte: a engenharia.

É que a maior parte do terreno da Mesopotâmia era árido (e ainda é). Só as áreas próximas aos rios prestavam. A agricultura para valer, numa extensão decente de terra, só seria possível se o pessoal construísse canais e reservatórios Mesopotâmia afora. Aí eles aproveitariam as eventuais cheias dos rios para transformar terra seca em solo arável. Foi o que fizeram, por volta de 4000 a.C. Esses canais e reservatórios se tornariam os primeiros projetos de engenharia da história. E marcariam o início de algo ainda mais importante do que isso: a Suméria, primeira civilização de todos os tempos.

O projeto mesopotâmico de irrigação só teve como sair do papiro porque contou com algo inédito até ali: centenas de indivíduos cooperando num plano de longo prazo. Longo mesmo, porque não bastava canalizar e armazenar água das cheias. Tão importante quanto era racionar o uso dos reservatórios nas épocas de chuvas magras. Sem esse controle não haveria como alimentar todo mundo. E quem fornecia esse controle era um comando central, dividido em vários níveis hierárquicos, cada um com funções pré-definidas. Era a primeira forma de organização que dava para chamar de governo. Ou seja: o próprio conceito de Estado surgiu na Terra justamente para controlar o suprimento de água.

Mas agora, 6 mil anos depois, essa ordem virou de cabeça para baixo. Outro Estado, o de São Paulo, trocou o gerenciamento da água pelo de outro recurso, menos nobre: seu projeto de manutenção de poder. Se as chuvas continuarem magras, talvez nem dê mais tempo de racionar o consumo – não vai sobrar água para consumo nenhum, nem esbanjado nem racionado. E tudo porque a palavra “racionamento” não soaria bem no meio da campanha. Ao deixar de lado a racionalização do suprimento de água por marquetagem, o governo Alckmin consegue uma façanha épica: subverte o conceito de civilização. E devolve seus próprios eleitores à barbárie.