Como o maior historiador americano via seu país

Atualizado em 2 de outubro de 2014 às 16:56
A história americana tem figuras inspiradoras como Martin Luther Kink
A história americana tem figuras inspiradoras como Martin Luther Kink

Este texto é o primeiro capítulo do livro “A Power Governments Cannot Suppress” , do maior historiador americano, Howard Zinn. Zinn, morto em 2010, é autor do clássico “A People’s History of the United States: 1492 to present”, que o Diário recomenda vivamente a quem deseja conhecer os Estados Unidos com a devida profundidade.

O futuro dos EUA está ligado à compreensão do nosso passado. Por isso, escrever sobre a história, do meu ponto de vista, nunca é um ato neutro. Ao escrever, espero despertar a consciência da injustiça racial, do preconceito sexual, da desigualdade de classes e do orgulho nacional.

Também quero trazer para a luz do dia a resistência – de que nunca se fala – das pessoas contra o poder do sistema governante, a recusa dos indígenas a simplesmente desaparecerem, a rebelião dos negros no movimento contra a escravatura e o movimento mais recente contra a segregação racial, as greves feitas pela gente trabalhadora através de toda a história dos Estados Unidos da América, com a intenção de melhorar a sua vida.

Omitir esses atos de resistência é apoiar a visão oficial de que o poder se baseia unicamente nos que têm armas e possuem riqueza. Escrevo para ilustrar o poder criativo das pessoas que lutam por um mundo melhor. As pessoas, quando estão organizadas, têm um poder imenso, mais que qualquer governo. A nossa história está impregnada de histórias de gente que resiste, se pronuncia, se entrincheira, organiza, contacta, cria redes de resistência e muda o curso da história.

Não quero inventar vitórias dos movimentos populares. Mas pensar que a escrita da história deve simplesmente apontar a recapitulação dos fracassos que dominam o passado é converter os historiadores em colaboradores de um ciclo interminável de derrotas. Se a história há de ser criativa e antecipar um futuro possível sem negar o passado, creio que tem que sublinhar novas possibilidades de revelar esses episódios ocultos do passado quando, ainda que seja em breves lampejos, as pessoas mostraram a sua capacidade de resistir, de se unirem e, ocasionalmente, vencerem.

Suponho, ou talvez só espero, que o nosso futuro pode encontrar-se nos fugidios momentos de compaixão do passado, em vez dos seus sólidos séculos de guerra.

A história pode ajudar as nossas lutas. A história pode fazer-nos abandonar a ideia de que os interesses governamentais e os interesses do povo são os mesmos. A história pode contar-nos a frequência com que os governos nos mentiram, como ordenaram que setores inteiros da população fossem massacrados, como negam a existência dos pobres, como nos orientaram ao nosso momento atual – a “Guerra Prolongada”, a guerra sem fim.

Bush matou dezenas de milhares de pessoas e foi responsável por sofrimentos como o do veterano que aparece nesta foto com ele de 2007
Bush matou dezenas de milhares de pessoas em suas guerras e foi responsável por sofrimentos como o do veterano que aparece nesta foto com ele de 2007

É verdade, o nosso governo tem o poder de gastar a riqueza do país como quiser. Pode enviar tropas a qualquer parte do mundo. Em nome do nosso “interesse nacional”, o governo pode deslocar tropas para a fronteira EUA-México, fazer cercas de rede para muçulmanos de certos países, escutar em segredo as nossas conversas, abrir a nossa correspondência, examinar as nossas transações bancárias e intimidar-nos para que fiquemos calados.

O governo pode controlar a informação com a colaboração dos tímidos meios de comunicação. Apesar de tudo, este controle não é absoluto. No começo da Guerra do Vietnã, em 1965, dois terços dos norte-americanos apoiaram a guerra. Alguns anos depois, dois terços dos norte-americanos opuseram-se à guerra. Que aconteceu nesses três ou quatro anos? Uma osmose gradual de verdade filtrou-se pelos vãos do sistema de propaganda – a compreensão de que lhes tinham mentido e os tinham enganado.

É o que está a suceder agora, outra vez. É fácil sentir-se deslumbrado ou intimidado ao compreender que os que fabricam as guerras têm um enorme poder. Mas uma determinada perspectiva histórica pode servir, porque nos diz que em certos momentos da história os governos descobrem que todo o seu poder é fútil face ao poder de uma cidadania levada à ação.

Existe uma debilidade básica nos governos, por massivos que sejam os exércitos, por imensa que seja a sua riqueza, por muito que controlem a informação, porque o seu poder depende da obediência dos cidadãos, dos soldados dos funcionários públicos, dos jornalistas, dos escritores, dos professores e dos artistas. Quando os cidadãos começam a suspeitar que os enganaram e retiram o seu apoio, o governo perde a sua legitimidade e o seu poder.

Quando despertam uma manhã e vêem um milhão de pessoas encolerizadas nas ruas da capital, os dirigentes de um país começam a fazer as malas e a chamar um helicóptero. Não é fantasia, é história recente. É a história das Filipinas, da Indonésia, da Grécia, de Portugal e Espanha, da Rússia, Alemanha Oriental, Polónia, Hungria, Roménia. Pensemos na Argentina e na África do Sul e em outros lugares onde não parecia haver esperança de mudança e depois houve. Lembremos Somoza na Nicarágua escapulindo no seu avião privado, Ferdinando e Imelda Marcos recolhendo apressados as suas jóias e roupas, o Xá do Irã procurando desesperado um país que o aceitasse quando fugiu das multidões em Teerã, Duvalier no Haiti, que apenas conseguiu vestir as calças, antes de escapar à fúria do povo haitiano.

Não vimos George W Bush escapar de helicóptero. Mas podemos responsabilizá-lo por catapultar a nação para duas guerras, pela morte e mutilação de dezenas de milhares de seres humanos neste país, no Afeganistão e Iraque, e pelas suas violações da Constituição dos EUA e do direito internacional.

Um Congresso covarde o poupou do impeachment. O Congresso que se dispôs a destituir Nixon por forçar a entrada num edifício não removeu Bush por forçar a entrada num país. Esteve disposto a impugnar Clinton pelas suas travessuras sexuais, mas não puniu Bush por entregar a riqueza do país aos superricos.

Hoeard Zinn contou a história dos Estados Unidos por um ângulo quase sempre esquecido
Hoeard Zinn contou a história dos Estados Unidos por um ângulo quase sempre esquecido

O poder militar tem os seus limites – limites criados por seres humanos pelo seu sentido de justiça e a sua capacidade de resistir. Os EUA, com as suas 10.000 armas nucleares, não conseguiram vencer na Coreia ou no Vietnã, não puderam impedir a revolução em Cuba ou na Nicarágua. Tal como a União Soviética, com as suas armas nucleares e o imenso exército, foi obrigada a retirar-se do Afeganistão. E não pôde impedir o movimento do Solidariedade na Polônia.

Um país com poder militar pode destruir, mas não pode construir. Os seus cidadãos inquietam-se porque as suas necessidades básicas são sacrificadas à glória militar, enquanto os seus jovens são ignorados e enviados para a guerra. O desassossego cresce, cresce e a cidadania funde-se cada vez mais com a resistência, chegam a chegar demasiados para poderem ser enquadrados.

Chegará o dia em que se derrubará o inchado império. Em contrapartida, a consciência pública começa a mostrar um descontentamento, vago para começar, sem que haja conexão entre o descontentamento e as políticas do governo. E as pontas começam a ligar-se, a indignação a crescer, e as pessoas começam a pronunciar-se, a organizar-se, a atuar.

Em todo o país cresce a consciência da falta de professores, enfermeiras, cuidados médicos, habitação acessível, à medida que se verificam os cortes orçamentais em todos os Estados da União. Um professor escreveu recentemente uma carta ao Boston Globe: “Pode suceder que 600 professores de Boston sejam despedidos, como consequência do deficit orçamental?”  O autor, depois, compara os cortes com os milhares de milhões gastos em bombas para, como diz, “enviar crianças iraquianas inocentes para os hospitais de Bagdá”.

Quando se enevoa o pensamento com o enorme poder que os governos, as empresas multinacionais, os exércitos e a polícia têm para controlar as mentes, esmagar a discordância e destruir a rebelião, devemos recordar um fenômeno que sempre considerei interessante: os que possuem um enorme poder ficam surpreendentemente nervosos quando pensam na sua capacidade de conservar o poder. Reagem quase histericamente perante o que parecem ser sinais insignificantes e não ameaçadores da oposição.

Vemos como o governo norte-americano, blindado nas suas mil máscaras do poder, trabalha intensamente para meter na cadeia alguns pacifistas ou manter um escritor ou um artista fora do país. Recordamos a histérica reação de Nixon a um homem solitário que se manifestava em frente da Casa Branca: “Prendam-no”!

É possível que os donos da autoridade saibam alguma coisa que eu não sei? Talvez conheçam a sua extrema debilidade. Talvez compreendam que pequenos movimentos podem converter-se em grandes movimentos, que uma ideia que se apodera da população possa chegar a ser indestrutível. O povo pode ser induzido a apoiar a guerra, a oprimir outros, mas essa não é a sua inclinação natural. Há os que falam de “pecado original”. Kurt Vonnegut questiona isso e fala antes de “virtude original”.

Uma hora a sociedade americana não aguentou mais a Guerra do Vietnã
Uma hora a sociedade americana não aguentou mais a Guerra do Vietnã

Há milhões de pessoas neste país que se opõem à guerra. Quando se vê numa estatística que 40% dos norte-americanos apoiam a guerra, isso significa que 60% dos norte-americanos não a apoiam. Estou convicto que a quantidade de pessoas que se opõem à guerra continuará a aumentar e a quantidade de pessoas que a apoia continuará a diminuir. No caminho, artistas, músicos, escritores e trabalhadores da cultura emprestam um poder emocional e espiritual ao movimento pela paz e pela justiça. Com frequência, a rebelião começa como qualquer coisa cultural.

O desafio persiste. Do outro lado há forças imensuráveis: o dinheiro, o poder político, as empresas de mídia. Do nosso lado estão os povos do mundo e um poder maior que o do dinheiro e o das armas: a verdade. A verdade tem um poder próprio. A arte tem um poder próprio. A velha lição de que tudo o que fazemos importa é a importância da luta popular aqui, nos EUA, e em toda a parte. Um poema pode inspirar um movimento. Um panfleto pode desencadear uma revolução. A desobediência civil pode incitar muita gente e levá-la a pensar. Quando nos organizamos em conjunto, quando nos envolvemos, quando nos pomos de pé, e nos pronunciamos coletivamente podemos criar um poder que governo algum pode suprimir.

Vivemos num belo país. Mas aqueles que não respeitam a vida humana, a liberdade ou a justiça apoderaram-se dele. Agora depende de todos nós recuperá-lo.