Como o milionário João Moreira Salles fez amizade com um traficante, foi dar aulas na favela e se viu lançado num escândalo

Atualizado em 11 de março de 2018 às 21:48
João Moreira Salles

Do Público

POR IVAN NUNES

Pode ser que Notícias de Uma guerra Particular (1999) não tenha “nenhum interesse enquanto objecto, enquanto filme” – essa é, pelo menos, a opinião do seu realizador, João Moreira Salles. Como documento sobre a violência no Rio de Janeiro, no entanto, ele expressa com clareza cristalina a lógica das várias partes envolvidas – a polícia, o tráfico de droga, os moradores das favelas – e não perdeu, ao fim de 20 anos, nenhuma da sua urgência. O filme – um documentário para televisão, de cerca de uma hora – retrata um momento da história da cidade que parece hoje repetir-se.

Co-realizado com Kátia Lund, Notícias foi também de certa forma precursor de Cidade de Deus (2003), que a mesma Kátia dirigiria, três anos mais tarde, com Fernando Meirelles. Na vida de Salles, entretanto, o filme catapultou-o para uma notoriedade pública que não desejava e para um envolvimento social e político que talvez não tivesse previsto.

“Fizemos o Notícias porque aquele era o tema que o momento impunha”, diz Salles. No ano anterior, Kátia Lund tinha dirigido a produção de um videoclipe de Michael Jackson (They Don’t Care About Us) que Spike Lee filmara na favela, e por isso tinha o contacto do “dono do morro” de Dona Marta. Foi a partir desta experiência que Kátia perguntou a Salles se gostaria de tentar falar com Marcinho VP, que andava foragido, e que o realizador se achou num voo para Belo Horizonte, para ir encontrar o traficante no seu esconderijo.

“Eu nunca tinha estado com um traficante, ainda para mais um traficante com fama de ser perigoso. Uma das coisas é que não sabia como devia referir-me à profissão dele: não sabia se na ‘etiqueta’ da bandidagem chamar traficante era uma ofensa. Fiquei ali dando voltas: ‘Vocês da economia informal…’ Numa dessas vezes, o Márcio interrompeu: ‘Uma pausa aqui: eu vejo que você está muito constrangido em usar a palavra que descreve o que eu faço. Mas fique à vontade: pode dizer ‘traficante’, que é o que eu sou.’”

E em seguida deu a seguinte explicação: “Você é jornalista. Tenho a certeza de que hoje à noite, quando deitar a cabeça no travesseiro, vai querer sentir que foi o melhor jornalista que poderia ter sido. A mesma coisa vale para o médico, para o engenheiro – e vale para mim. Você quer exercer o seu potencial: não quer ser menos do que pode ser. Eu, pelos meus 13 ou 14 anos, dei-me conta de que gostava muito de máquinas, de engrenagens, de motores. Pensei que talvez pudesse ser engenheiro. Mas eu mal falo português direito – só fui até ao 2.º ou 3.º ano do ensino fundamental. Jamais poderia ser engenheiro: poderia ser porteiro, poderia até ser o melhor porteiro da Avenida Vieira Souto [avenida principal do bairro de Ipanema, de frente para a praia], mas francamente isso é muito pouco para mim. Poderia ser cobrador do ônibus – mas francamente é pouco para mim. Então decidi ser bandido, e sou o melhor bandido que conheço. Decidi ser dono do meu morro, que é aquilo que eu sou: nunca invadi outro morro e não invadirei.”

Nessa altura, Márcio já tinha consciência de que o tráfico de droga é uma actividade com um tempo de vida limitado; que o destino do traficante é morrer cedo. “Ele tinha, de forma ainda muito ‘rabiscada’ na cabeça dele, o projecto de deixar o tráfico. Pensava ir para Chiapas [México], onde havia a famosa revolta, juntar-se ao subcomandante Marcos e fazer ali a sua educação política, para regressar já não como traficante mas como líder político. E eu acho que, se ele tivesse nascido duas décadas mais cedo, teria sido um líder político importante no Rio de Janeiro, porque naquela época não existia tráfico. Indubitavelmente, ele tinha carisma, tinha coragem, tinha liderança, não era um monstro sanguinário, não era um assassino frio. Não que não tivesse matado, claro – isso vem junto com a bagagem de ser traficante.”

Conversas que não deveriam ter existido

“Tornámo-nos amigos”, conta Salles. Terminado o filme, o realizador passou a dar aulas na favela, numa associação de moradores. “Eu falava de cinema, de pintura… era uma espécie de história de arte. Tinha uma turma de 30 ou 40 pessoas, das quais imagino que seis ou sete estivessem fortemente armadas.” No fim das aulas, deixava-se ficar por ali, conversando. “Foram das conversas mais interessantes que eu tive na vida, porque eram conversas improváveis, conversas que não deveriam ter existido. No Rio de Janeiro, alguém que sai de onde eu saí e alguém que sai de onde saiu o Márcio nunca se encontram, e muito menos se encontram para conversar. Era uma conversa quase ‘ilustrada’, no sentido das Luzes: um tentando convencer o outro, sem nenhuma desigualdade – fosse a da força (em que a vantagem era dele) fosse a de classe (em que a vantagem era minha). Ele via-se como um justiceiro social e eu dizia-lhe que não se faz justiça social com uma arma na mão e com o direito de matar ou deixar viver.”

Esse convívio prolongou-se por dois anos, até que Márcio resolveu de facto partir, tentar chegar a Chiapas. Nessa altura, Salles fez-lhe uma proposta. “Eu disse-lhe: ‘Acho importante entender como um sujeito com as tuas potencialidades toma a decisão de se tornar bandido. Não é que o tráfico te tragou: você tomou essa decisão. Entre o caminho da profissão formal, dentro da lei, e a acção criminosa, você achou que fazia mais sentido a acção criminosa. Todos os dias há garotos que tomam essa mesma decisão, e acho importante entender isso. Quero também entender porque você decidiu abandonar o crime’.” Salles propôs-lhe então que escrevesse a sua história. “Liguei a um amigo que é editor, perguntei quanto se pagaria a um autor iniciante, e o valor que ele me deu foi o que ofereci ao Márcio. Ele aceitou.”

Saindo do Brasil pela fronteira argentina, a partir de lá enviava os capítulos. “A gente comentava pelo telefone: eu dizia o que achava bom, ou não tanto, ou o que precisava de ser desenvolvido. Até que um dia um advogado amigo da minha família vem dizer-me que a polícia tem os meus telefones sob escuta e que, portanto, sabe da minha relação com o Márcio.”

E nunca lhe tinha passado pela cabeça que isso pudesse acontecer? “Não – nada. Ingénuo, não é? Do ponto de vista moral, eu tinha a certeza de que não tinha cometido nenhuma falta: antes de fazer a proposta, tinha discutido o assunto com duas ou três pessoas em cuja opinião confiava. Mas, do ponto de vista legal, não sabia se tinha cometido ou não um crime. Imagine que está em casa, abre o jornal e lê: ‘Filho de banqueiro dá dinheiro a traficante.’ É claro que vai achar esquisito – é uma história esquisitíssima. Até que eu consiga explicar a história completa, com as suas subtilezas, a maioria das pessoas já formou uma opinião.”

Marcinho VP

O morro e o asfalto

O resultado desta relação de amizade entre Salles e Márcio foi um escândalo público, alimentado pelo então governador do estado do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho, que aproveitou para tentar tirar vantagem política. “Estávamos no início do período eleitoral que desembocaria nas presidenciais de 2002 e a estratégia de Garotinho foi usar-me para se projectar nacionalmente, dizendo assim: ‘Eu desbaratei o nexo entre o morro e o asfalto. Todos querem saber quem financia o tráfico no Brasil, eu descobri. Estão aqui as gravações: é o capital financeiro, representado por João Moreira Salles, com Márcio VP, o bandido mais procurado do Rio de Janeiro. Essa é a conexão que eu tive coragem de enfrentar’.”

Por três ou quatro meses, Salles achou-se no centro das notícias no Brasil. “Aparecia no noticiário todos os dias, tinha carro de exteriores da televisão parado na porta da minha casa, recebi telefonemas com ameaças de morte. Cheguei a andar com seguranças.” Depois, foi alvo de um processo judicial. “Acabei por ser inocentado, mas tive de passar por isso. No dia em que fui à polícia prestar depoimento, havia – não sei – uns 50 ou 60 fotógrafos.”

“Foi um momento muito tenso. E vem em ondas: quando você pensa que já passou, volta. Em seguida, sou intimado a depor perante a Comissão Parlamentar de Inquérito do narcotráfico, em Brasília, e naquele momento não sei se não haverá um deputado qualquer, querendo fazer bonito, que resolva prender-me. Mas tinha a consciência clara de que eu mesmo me coloquei nessa situação”, observa Salles.

“De facto, tomei a decisão de estabelecer uma relação com um traficante; de facto, fiquei dois anos conversando com ele; de facto, decidi pagar-lhe por um livro que ele estava escrevendo. Em nenhum momento achei que aquilo por que eu estava passando era indevido. Fui tolo, mas a tolice não me inocenta. O que achei um acto de oportunismo, de vigarice, foi o governador usar-me como símbolo do narcotráfico brasileiro, sabendo evidentemente que isso era um delírio.”

Marcinho VP foi assassinado no presídio de Bangu em Julho de 2003, aos 33 anos. Dois meses antes, a sua história havia sido publicada pelo jornalista Caco Barcellos, no livro Abusado – O Dono do Morro Dona Marta, que ganhou o Prémio Jabuti de 2004 na categoria de reportagem e biografia, e que incorpora aquilo que Marcinho VP havia escrito. Segundo a polícia, Márcio terá sido morto por outros presos ligados ao narcotráfico, por causa das informações que revelava no livro.