Como os escandinavos tratam os presos. Por Claudia Wallin, de Estocolmo

Atualizado em 5 de janeiro de 2017 às 8:43
Cela na prisão onde está Breivik
Cela na prisão onde está Breivik

O ideário nórdico sobre os direitos de um prisioneiro é de fazer um justiceiro brasileiro hiperventilar.

Só recolhendo os cacos de muitas verdades absolutas será possível tentar compreender a atordoante notícia que trazem os jornais noruegueses: Anders Behring Breivik, autor confesso do massacre brutal que chocou o mundo em 2011, vai processar o governo da Noruega. De dentro da prisão.

Breivik diz que seus direitos humanos estão sendo violados na penitenciária. E será ouvido.

Puxemos, antes, a capivara do atirador.

No dia 22 de julho de 2011, o ultradireitista Anders Breivik cometeu um duplo atentado que matou 77 pessoas, em protesto contra o que ele chamou de “invasão muçulmana” do país. Primeiro, detonou uma bomba perto da sede do governo norueguês em Oslo, provocando a morte de oito pessoas. Em seguida, abriu fogo contra uma multidão da Juventude Social-Democrata reunida em um acampamento de verão na ilha de Utoya, próxima à capital, matando 69 pessoas – quase todos adolescentes.

Da sua folha corrida escorre sangue em cascata – mas, em nome do robusto respeito às normas universais que garantem a proteção aos direitos humanos de cada cidadão da Noruega, neste caso isso literalmente não vem ao caso.

Assim como dita a lei para todos os presos na Noruega, a Anders Breivik deve ser dado o direito de ir à Justiça defender seus direitos. As audiências do processo que ele move contra o Estado estão previstas para março.

Em outras palavras, na Noruega até o carniceiro de Utoya tem direitos.

Uma foto tirada por Breivik antes do massacre
Uma foto tirada por Breivik antes do massacre

Preso desde 2012 em regime de isolamento, Breivik cita o Artigo 3 da Convenção Européia de Direitos Humanos para alegar que suas condições de confinamento na penitenciária de segurança máxima de Skien constituem tortura.

Alega ele também que a pré-censura das cartas que envia e recebe na prisão viola o Artigo 8, que trata do direito de um indivíduo a “vida privada e em família, sua casa e sua correspondência”.

Alega ainda seu advogado, Øystein Storrvik, que ao ser privado de um contato mais frequente com outras pessoas Breivik está efetivamente sendo impedido de encontrar uma parceira, em violação ao Artigo 12 da Convenção Européia – o direito de se casar.

Pausa para digestão.

Anders descreve a prisão como “um inferno”. Em 2014, chegou a ameaçar entrar em greve de fome na prisão para exigir a troca de sua Playstation 2 por uma Playstation 3, além de demandar um sofá ou uma cadeira mais confortável na cela.

“Outros detentos têm acesso a videogames melhores, enquanto eu só tenho direito a jogos infantis e menos interessantes, como por exemplo o ‘Rayman Revolution’”, escreveu o atirador em uma carta.

No ano passado, sua disposição de processar o governo ganhou fôlego após uma visita à prisão feita pelo Ombudsman Civil, que é o responsável pela investigação de possíveis injustiças cometidas por autoridades públicas na Noruega.

“O regime de isolamento em unidades de segurança máxima impõe condições extremamente rígidas para a liberdade de movimento dos detentos, e sua possibilidade de manter contato com outras pessoas”, constatou em seu relatório o Ombudsman, Aage Thor Falkanger.

“Isto, e o fato de que há um número muito limitado de detentos em uma unidade de segurança máxima, significa que tal regime de prisão representa um elevado risco de constituir tratamento desumano’”, completou Falkanger.

Mais: este ano, Anders Breivik começou a estudar Ciências Políticas na Universidade de Oslo, a partir de sua cela. No website da universidade, o reitor admitiu ter enfrentado “dilemas morais” para aceitar a inscrição do atirador, apesar de Breivik ter obtido todas as qualificações para tal. Mas concluiu: “A universidade deve manter o respeito às suas regras – pelo bem de nós mesmos como sociedade, e não dele (Breivik)”.

Em respeito ao dinheiro do contribuinte, foi decidido que as audiências do processo movido por Breivik serão realizadas na própria prisão de Skien (sudeste da Noruega), onde o atirador está encarcerado. Quer-se, assim, economizar os gastos com transporte e segurança.

Ainda não se sabe se Breivik conseguirá convencer a Justiça de que o inferno são os outros.

Serão os nórdicos loucos, ou visionários?

Certa vez, ao visitar a maior penitenciária de segurança máxima da Suécia, observei que as instalações eram comparáveis às de um hotel cinco estrelas, onde os presos tinham ainda acesso a bibliotecas, cursos universitários e treinamento profissionalizante de qualidade.

O diretor da prisão me disse então o seguinte: “Para a Suécia, a perda da liberdade já é o maior castigo que se pode impor a um indivíduo. Daqui de dentro, devem sair pessoas melhores e mais capacitadas”.

Provavelmente a regra não se aplica ao caso de Breivik – sua pena, de 21 anos de prisão, poderá ser prorrogada caso ele ainda seja considerado um perigo para a sociedade.

Mas o direito nórdico mostra que pau que não bate em Chico, também não bate em Francisco.

Publicado em março, este texto é reapresentado agora por motivos óbvios.