Como Paul Newman personificou a nobreza (e não apenas no cinema)

Atualizado em 17 de novembro de 2012 às 19:49

O legado de Newman vai muito além do que todos nós vimos em tantos filmes

"Um homem sem inimigos é um homem sem caráter"

A primeira vez em que vi Paul Newman foi numa Sessão Coruja, da TV Globo, nos anos 1980. Passava Rebeldia Indomável, no qual ele fazia um presidiário tentando fugir de uma colônia penal rural. Numa cena, Newman aposta com o colega interpretado por George Kennedy qual dos dois conseguia engolir o maior número de ovos cozidos. O que poderia ser uma sequência de mau gosto, caricatural e estúpida tomou uma dimensão épica por causa daquele sujeito de olhos azuis claros, feições nobres, que segurou a tensão dramática com uma elegância tirada sabe-se lá de onde. Essa aura especial de Newman esteve presente em cada longa-metragem de que participou. “Sempre que peguei um script foi uma questão de ver o que eu poderia fazer com ele. Eu vejo cores e imagens. Tem de haver um cheiro. É como se apaixonar. Você não consegue entender por quê.”

Nascido em Ohio numa família de origem judaica, ele foi expulso do colégio em que estudava por mau comportamento. Nos anos 1950, participou de programas sem importância na televisão e fez peças de teatro no off-Broadway. Numa delas, Picnic, conheceu a segunda mulher, Joanne Woodward, sua companheira para o resto da vida. Foi aluno do famoso Método de Lee Strassberg, que formou seu ídolo Marlon Brando, seu rival James Dean, a linda atormentada Marilyn Monroe e, depois, tantos outros (Al Pacino, Dustin Hoffman, Robert De Niro, Jane Fonda etc).

Com a morte de Dean, a década seguinte se mostrou, praticamente, dele. Nenhum outro conseguiria encarnar, daquela maneira, uma galeria de rebeldes, foras da lei e desajustados. Seu grande momento como outlaw aconteceu com o papel do bandido gente fina Butch Cassidy. A dupla de caubóis que desafia o sistema capturava perfeitamente o espírito da contracultura dos anos 1960, e Newman, já quarentão, virou ídolo juntamente com seu seguidor Robert Redford, que fazia o pistoleiro Sundance Kid). Essa consistência, talento e estilo eram tirados de sua vida. Apaixonado por velocidade, teve carros de corrida, disputou provas, profissionalizou-se. Conseguiu a segunda colocação nas 24 Horas de Le Mans, a mítica prova disputada na França, com um Porsche. Em 1995, aos 70 anos, correu em Daytona, nos Estados Unidos.

Nunca se preocupou com moda (queimou um tuxedo numa ocasião), mas também sempre deixou claro que se vestia como alguém que não queria passar em branco. O terno carvão justo com gravata escura e abotoaduras de seu Eddie Felson em Desafio à Corrupção e a camisa denim de Rebeldia Indomável são clássicos. Ele consegue ficar cool em qualquer situação, até na companhia de uma gangue de assassinos ou sujo de graxa (coisa que não serve para todo mundo, ok, mas você pode tentar sempre).

Com o passar do tempo, Newman teve papéis menores, mais adequados à sua idade, ainda marcantes, como em O Veredito. Em vez de perseguir eternamente a juventude perdida, fazer uma plástica nas bolsas dos olhos azuis, um implante de cabelo e casar-se pela trigésima terceira vez com uma loira peituda de passado remoto, passou a se dedicar à sua fábrica de molhos e condimentos, Newman’s Own. Ganhou mais dinheiro com isso do que com o cinema (Newman é de uma geração anterior ao salário surreal de gente bonita, sem talento e que faz filmes ruins). A grana foi revertida para suas obras de caridade. A mais famosa delas é o acampamento Hole in The Wall para crianças com necessidades especiais. Ele fundou a instituição, batizada com o nome da gangue de Butch Cassidy. Hoje, é uma rede que cuida de 13 mil crianças por ano, de graça. Em junho de 1999, Newman doou 250 mil dólares para o campo de refugiados de Kosovo.

Em 2008, foi nomeado a celebridade mais generosa por ceder mais de 20 milhões de dólares para a benemerência. Paul Leonard Newman morreu naquele mesmo ano, em decorrência de um câncer no pulmão (foi um fumante inveterado). O jornal L’Osservatore Romano, editado no Vaticano, escreveu que ele era “um coração generoso e um ator de dignidade e estilo raros em Hollywood”. Se ele era um santo? Não. “Um homem sem inimigos é um homem sem caráter”, disse certa vez. Paul Newman teve diversos inimigos. Mas sempre foi um homem e um ator maior do que eles. (Texto publicado na revista Alfa de julho)

Este texto foi publicado no Diário do Centro do Mundo em 25 de julho de 2012.