Como tratar os militares: a lição de Kirchner a seus colegas brasileiros. Por Miguel Enriquez

Atualizado em 8 de agosto de 2018 às 21:06
Néstor Kirchner

POR MIGUEL ENRIQUEZ

Decorridos 34 anos da redemocratização, o Brasil assiste estupefato ao surgimento de uma chapa puro sangue de extrema direita disputando a  corrida presidencial.

Defensores da ditadura militar que por duas décadas controlou com mão de ferro o país, os candidatos do PSL, o capitão da reserva Jair Bolsonaro e o general de pijama Hamilton Mourão, não apenas estimulam as viúvas de 1964, que pregam uma nova intervenção militar, como se identificam e  glorificam torturadores.

O mais tristemente famoso deles é o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, responsável pela prisão de mais de quinhentos brasileiros e pela morte de cinquenta no tempo em que comandou o Doi-Codi, em São Paulo, no início dos anos 1970.

Na origem desse fenômeno, seguramente está a forma como foi negociada a transição do regime militar para o civil. A começar pela anistia ampla, geral e irrestrita, que nivelou e tratou de forma igual perseguidos e perseguidores.

Isto é, colocou-se no mesmo balaio as pessoas que haviam sido condenadas e cumpriram suas penas, os que se exilaram ou foram banidos do país, e os agentes do terrorismo de Estado, da alta hierarquia das Forças Armadas aos agentes da repressão, responsáveis por 223 mortes e pelo desaparecimento de 210 presos políticos, de acordo com a Comissão Nacional da Verdade.

Em seu relatório final, com 4328 páginas, entregue no dia 10 de dezembro de 2014 à presidente Dilma Rousseff, a Comissão aponta 377 pessoas como responsáveis diretas ou indiretas pela prática de tortura e assassinatos durante a ditadura militar, entre 1964 e 1985.

À exceção de Ustra, que confirma a regra, condenado pela morte do jornalista Luiz Eduardo Merlino em 1971, todos os agentes identificados pela Comissão da Verdade foram poupados de qualquer julgamento.

A conciliação à brasileira, que jogou para debaixo do tapete toda tentativa de revisar a lei de Anistia e penalizar os carrascos, contou com a conivência do Judiciário, do Congresso e de todos presidentes que se sucederam desde 1985. Em nome da prudência, para não melindrar os militares, optou-se pelo silêncio.

Situação bem diferente do que ocorreu na vizinha Argentina.

Desde a queda da ditadura militar, em1983, seus crimes foram cobrados publicamente. Mesmo as tentativas de beneficiar os criminosos, que durante algum tempo prevaleceram, acabaram na lata do lixo da história.

Foram decisivas, no caso argentino, a firmeza e a coragem política de dois de seus presidentes pós-ditadura.

O primeiro foi Raul Alfonsin, do Partido Radical, que revogou uma auto anistia promulgada pelos militares nos estertores do regime, o que permitiu a condenação e encarceramento de dezenas de integrantes das forças armadas e policiais, incluindo ex-chefes de governo.

O segundo foi o peronista Néstor Kirchner, que ao assumir o poder, em 2003, anulou um indulto concedido em 1990 por um de seus antecessores, o também peronista Carlos Menem.

Kirchner, da ala esquerda do Partido Justicialista, fundado pelo general Juan Domingo Perón, foi além. Publicamente, pelo menos em duas oportunidades enquadrou os militares, reafirmando seu repúdio ao arbítrio e compromisso com a democracia.

A mais sensacional dessas manifestações foi seu pronunciamento à tropa e ao oficialato do Exército, reunidos no Colégio Militar, em Buenos Aires, no dia 29 de novembro de 2006 (vídeos abaixo).

Com voz firme, do alto de uma tribuna, Kirchner encarou o mar de homens fardados e armados à sua frente:

“Quero que fique claro que, como presidente da nação argentina, não tenho medo, nem os temo. Só queremos o Exército de San Martin, Belgrano  e Sávio e não daqueles que assassinaram nossos próprios irmãos, que foram Videla, Galtieri, Viola e Bignone. Há um novo país. Necessitamos de soldados comprometidos com a pátria.

E como presidente da nação argentina, venho reivindicar um Exército Nacional, comprometido com o país e distanciado definitivamente do terrorismo de estado.

Senhores oficiais e suboficiais: lhes peço fortemente que definitivamente incorporem esse conceito e essa filosofia à construção da pátria que nós argentinos necessitamos.”

Dois anos antes, no mesmo Colégio Militar, ao deparar com as fotografias dos ditadores Jorge Rafael Videla e Reynaldo Bignone na galeria de ex-diretores da instituição, Kirchner ordenou ao comandante do exército Roberto Bendini que as retirasse da parede. “Proceda”, disse.

Obediente, o próprio Bendini baixou as fotos.

Pelo que consta, até hoje nenhum saudoso da ditadura de Videla e companhia ousou colocar as manguinhas de fora na Argentina.

Muito menos apareceram cavalgaduras puro sangue candidatando-se à presidência da República.