Como um psiquiatra mudou a história dos julgamentos de Nuremberg

Atualizado em 24 de novembro de 2025 às 23:19
O psiquiatra Douglas M. Kelley

Há 80 anos, enquanto o mundo tomava conhecimento da escala dos crimes nazistas após o fim da Segunda Guerra, uma pergunta central se impunha: os líderes do Terceiro Reich eram inimputáveis por doença mental ou poderiam ser julgados como pessoas em pleno uso de suas faculdades? Em Nuremberg, coube ao psiquiatra americano Douglas M. Kelley responder a essa questão, avaliando a saúde mental de 24 altos dirigentes do regime antes do julgamento histórico. Com informações da BBC Brasil.

Formado pela Universidade da Califórnia e tenente-coronel do Exército dos EUA, Kelley tinha experiência no tratamento de soldados com “fadiga de combate”, hoje conhecida como transtorno de estresse pós-traumático. Em Nuremberg, ele passou mais de oito meses entrevistando e testando figuras como Hermann Goering, Rudolf Hess, Joachim von Ribbentrop e Wilhelm Keitel. A missão era decisiva: sem confirmação de sanidade, todo o julgamento poderia ser questionado.

Kelley recorreu a uma combinação de entrevistas clínicas e testes psicológicos, como o Rorschach (manchas de tinta), o teste de percepção temática, com imagens reais, e avaliações de QI. O resultado o surpreendeu: ele concluiu que os acusados não eram psicopatas desconectados da realidade, mas indivíduos com inteligência média ou acima da média, comparáveis a executivos de alto escalão em qualquer país. Em suas palavras, não eram “loucos” nem “super-homens”.

Essa conclusão tinha peso jurídico e político. Como lembram especialistas em direitos humanos, o direito penal democrático exige que o acusado responda por seus atos em condições de livre-arbítrio. Ao declarar que os chefes nazistas estavam mentalmente aptos, Kelley reforçou a base para que fossem responsabilizados por crimes de guerra, crimes contra a humanidade e outras acusações definidas pelo Tribunal Militar Internacional.

Líderes do alto escalão nazista durante o Tribunal de Nuremberg, em 1945

Entre os réus, Hermann Goering se tornou o foco principal do psiquiatra. Ex-comandante da Luftwaffe e herdeiro político de Hitler, Goering chamou a atenção de Kelley pelo carisma, pela inteligência e por traços de personalidade que, segundo o biógrafo Jack El-Hai, se aproximavam dos do próprio médico. Os dois desenvolveram uma relação de confiança que nunca apagou a consciência de Kelley sobre a crueldade das decisões de Goering na guerra.

Kelley também interveio em aspectos práticos da vida do prisioneiro, controlando sua dependência de codeína e impondo dieta para reduzir o peso superior a 120 quilos. A proximidade, porém, levou o psiquiatra a ultrapassar limites profissionais: ele aceitou levar cartas de Goering para a esposa e chegou a ser sondado para, em caso de morte do casal, adotar a filha Edda e levá-la para os Estados Unidos, proposta que sua própria esposa rejeitou.

O contato prolongado com os nazistas marcou profundamente Kelley. Inicialmente, ele imaginava encontrar um quadro de doença mental coletiva, algo que explicasse racionalmente as atrocidades. Ao descobrir que eram pessoas consideradas “normais” do ponto de vista psiquiátrico, formadas por contexto, propaganda e burocracia, o médico passou a alertar que o fascismo poderia surgir em qualquer país, inclusive nos Estados Unidos, se as mesmas condições fossem criadas.

De volta aos EUA, em 1946, Kelley fez conferências e escreveu artigos chamando atenção para esse risco. Desencantado com os limites da psiquiatria para explicar crimes em larga escala, migrou para a criminologia em busca de novas respostas. Anos depois, em 1958, em meio a problemas com álcool e depressão, ele se matou ingerindo uma cápsula de cianeto, o mesmo método usado por Goering para escapar da forca em 1946. A coincidência alimentou suspeitas sobre o acesso do nazista ao veneno, nunca comprovadas, e consolidou a imagem de um psiquiatra que se viu diante da possibilidade de que a “maldade” pudesse habitar pessoas consideradas comuns.