Constituinte e reforma constitucional são coisas distintas

Atualizado em 26 de junho de 2013 às 10:07

Mas as coisas parecem estar embaralhadas nos debates políticos brasileiros.

Sede do Supremo, em Brasília
Sede do Supremo, em Brasília

DE NAVARRA

Francis Bacon dizia que aquele que não aplica novos remédios deve esperar novos males, pois o tempo é o maior dos inovadores.

No último dia 24, em discurso na reunião com prefeitos e governadores no Palácio do Planalto, a presidenta Dilma Roussef cautelosamente levantou a enigmática bandeira de uma nova Constituinte.

Digo cautelosamente por causa da hesitação do seu anúncio em relação ao tema, afinal, a reforma política dependeria de um processo constituinte, intermediado por um plebiscito que só seria desenhado após um debate.

Acredito que Dilma tenta se encaminhar pela trilha da ampliação dos espaços ditos “democráticos”.

Aqui na Espanha, um tema recorrente ao longo da intensificação da crise econômica tem sido a incapacidade da população de se fazer ouvir.

As eleições espanholas têm representado uma espécie de cheque em branco para os mandatários.

Ainda que a população tome as ruas, as maiorias parlamentares tapam os ouvidos, levando a comunidade ao limite diante do desmonte do Estado de Bem Estar.

Nós brasileiros sabemos que estamos sentados sobre uma panela de pressão há muito tempo. E nosso modelo político-social mistura como poucos os ingredientes favoráveis a uma convulsão popular.

O Brasil tornou-se um lugar insalubre para viver. E esta tem sido a veemente mensagem das ruas.

A menção de Dilma a um processo constituinte parece ser uma tentativa de absorver o clamor popular, racionalizar o embate de ideias, e canalizar as energias do momento de ruptura para algum tipo de formalização legal. Uma disposição para domar as forças desencadeadas nas manifestações dos últimos dias.

Além do mais, esta opção daria um status diferenciado à mudança a ser implementada num ponto tão imprescindível para a democracia como o exercício da representação política.

Outra coisa, porém, é a necessidade de um processo tão radical e específico para levar a cabo esta reforma.

O termo “constituinte”, a rigor, refere-se à elaboração de uma nova Constituição. Eu me pergunto se Dilma tem plena consciência do que significa isso, pois no mundo da política o uso das palavras têm conseqüências significativas.

Por outro lado, se ela estivesse se referindo a modificações estruturais profundas mantendo-se a atual Constituição, isso se daria através de emendas, cujo processamento legislativo a própria presidenta tem competência para iniciar.

Reitero: processo constituinte e reforma constitucional são coisas distintas.

O primeiro diz respeito à etapa orgânica de transição para uma nova Constituição. As emendas, por seu turno, fazem parte do sistema constitucional vigente e estão sujeitas aos limites nele dispostos.

Por exemplo, uma emenda constitucional proposta pela presidenta, além de enfrentar o trâmite parlamentar, poderia estar sujeita, após sua promulgação, ao julgamento de sua constitucionalidade no STF.

Temos que convir, no entanto, que todas as manifestações dos últimos dias representam um relevante problema político, que deve ser resolvido, por óbvio, politicamente.

Cabe observar também, que magistrados são imprescindíveis para a sustentação de um Estado Democrático de Direito, mas podem ser torpes e ter uma deficiente capacidade de avaliação diante de momentos de ruptura.

Imaginemos um cenário em que o STF decida encarar uma queda de braço com a presidência da República em relação a uma emenda constitucional sobre a reforma política num momento tão delicado para o país.

Todas as manifestação correriam o risco de ser em vão por causa de embates dessa natureza.

Esse, no entanto, é o sistema de freios e contrapesos que adotamos. A única alternativa seria a convocação de uma Assembléia Constituinte, que de específica já não teria nada.

Por outro lado, questão incômoda é a de como realizar o tal processo constituinte sugerido.

Dilma referiu-se ao plebiscito.

Atualmente, a Constituição só permite dois tipos de reforma: a ordinária, nos termos do artigo 60; e a prevista no art. 5º, parágrafo 3º. Na prática, são quase idênticas.

Hoje, não há como modificar a Constituição fora dessas hipóteses.

Para que um processo constituinte fosse instaurado, se queremos continuar regidos pela Constituição de 1988, seria necessário reformá-la previamente, introduzindo alterações que estabelecessem os parâmetros desta manifestação e deste processamento.

Se os limites constitucionais fossem respeitados, a proposta presidencial seria possível através de emendas que determinassem, por exemplo, uma previsão de reforma total da Constituição; uma nova revisão constitucional; ou adicionando ao artigo 60 um inciso que vincule a iniciativa popular ao processo de reforma vigente.

Só assim poderíamos partir para o tal processo constituinte. Em qualquer caso, eventuais emendas que instituíssem esta via, teriam natureza derivada, dependeriam de tramitação no Congresso, e estariam sujeitas à intervenção do STF depois de concluídas.

Se tais limites forem simplesmente ignorados, estaremos diante de uma ruptura constitucional.

Isso seria mais grave do que o exercício de um poder constituinte, pois atropelar a Constituição é muito pior que elaborar outra.

Diante de tudo o que temos visto, o discurso em torno da reforma política parece ter ficado mais nebuloso do que nunca.

“Tinha uma pedra no meio do caminho”, escreveu Drummond. Para Dilma, essa pedra é do tamanho de uma Constituição inteira.