Contra a ditadura e Bolsonaro, ‘Apesar de Você’, de Chico, completa 50 anos. Por Vitor Nuzzi

Atualizado em 25 de abril de 2020 às 11:57

PUBLICADO NA REDE BRASIL ATUAL

POR VITOR NUZZI

Panelaços e “barulhaços” contra Jair Bolsonaro tornaram-se frequentemente nas últimas semanas, mas em algumas janelas o som que se ouviu foi de uma antiga canção, que vai completar 50 anos. Apesar de Você é a única composição que Chico Buarque assume como sendo verdadeiramente “de protesto”. Foi feita após o retorno dele ao Brasil, em março de 1970, depois de 14 meses morando na Itália.

A volta ocorreu na manhã de 20 de março, no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, quando Chico e Marieta Severo desembarcaram com a primeira filha, Silvia, de 11 meses, nos braços.

“Volte fazendo barulho”, havia recomendado Vinícius de Moraes a um ainda receoso Chico, que havia deixado o Brasil pouco depois da edição do AI-5, em dezembro de 1968. Barulho não faltou no Galeão. Estava lá a turma do MPB-4, a atriz Betty Faria levou uma bandeira do Fluminense – time de Chico–, e o flautista Altamiro Carrilho e seu grupo tocaram A Banda, sucesso de 1966.

Com o AI-5, a vigilância sobre os artistas ficaria ainda maior. Caetano Veloso e Gilberto Gil chegaram a ser presos, e se exilaram na Inglaterra. Geraldo Vandré fugiu e passou mais de quatro anos entre o Chile e a França. Chico não foi preso, “apenas” interrogado. E depois aconselhado a permanecer algum tempo fora do Brasil.

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Para surpresa geral, Apesar de Você foi liberada pela censura. Com o sucesso da música, a ditadura vetou e recolheu os discos

Mesmo voltando, Chico percebe que a situação do país não melhorou em nada. Pelo contrário: o governo Médici representa o auge da repressão. Ao mesmo tempo, há certa “euforia” com o chamado milagre econômico, porque a economia crescia – para a minoria. E logo chegaria a Copa do Mundo, com Pelé, Tostão, Gérson, Rivelino, Jair e companhia encantando e conquistando o tricampeonato mundial.

A cabeça do compositor foi montando os versos de sua única canção assumidamente “de protesto”, embora sempre alguém identifique mensagens veladas em outras canções. Apesar de Você foi enviada para apreciação da censura, como era obrigatório, e aí veio a surpresa: liberada. A gravadora soltou um compacto que tinha Desalento do outro lado.

Foi um sucesso. Em pouco tempo, 100 mil cópias foram vendidas. Até que alguém se deu conta: Apesar de Você foi proibida e os discos, recolhidos. Só voltaria a ser gravada, e tocada, em 1978, na onda dos movimentos por anistia e pela volta da democracia.

Segundo Chico, o “você” não se refere especificamente ao ditador de plantão, no caso Médici, mas ao poder, ao chamado “sistema”. Tocada nas janelas, agora com o país sob o governo Bolsonaro, a música parece ter sido feita outro dia.

Cravos na janela

O dia de hoje (25) remete a uma data histórica importante, da Revolução dos Cravos, em Portugal. Chico deveria estar em Lisboa para receber o Prêmio Camões, mas a pandemia do novo coronavírus cancelou evento e viagem. Por isso, ele gravou uma mensagem de saudação aos amigos portugueses e pediu também pelos brasileiros.

“Este ano eu pretendia estar na festa, porque os organizadores da entrega do Prêmio Camões me deram a honra de marcar a cerimônia para esta data. (…) Mas esta tarde, deixarei na janela cravos vermelhos e cantarei, alto e bom som, Grândola, Vila Morena, de Zeca Afonso”, disse Chico, citando a música símbolo do movimento de 1974.

“Se possível, peço ainda a vocês que guardem o pensamento para seus irmãos brasileiros, que estão mais do que nunca necessitados de um cheirinho de alecrim”, acrescentou o compositor, fazendo referência à canção Tanto Mar, que ele compôs nos anos 1970.