Conversas com Escritores Mortos: Dickens ‘fala’ sobre reis ingleses

Atualizado em 30 de junho de 2014 às 22:40

A colunista Camila Nogueira de vez em quando nos surpreende com conversas extraordinárias. De um lado, ela mesma. De outro, algum grande escritor — morto. Os diálogos de Camila se valem em parte dela mesma, com suas perguntas agudas, e em parte dos “entrevistados” — de cujas obras ela extrai as respostas.

No presente caso, Camila conversa com Charles Dickens sobre dois reis ingleses que ele perfilou em sua História da Inglaterra para Crianças.

Katharine Hepburn e Peter O'Toole nos papeis de Eleanor da Aquitânia e Henrique II no filme "O Leão no Inverno"
Katharine Hepburn e Peter O’Toole nos papeis de Eleanor da Aquitânia e Henrique II no filme “O Leão no Inverno”

A história de Henrique II e de sua amizade/ inimizade com Thomas Becket é interessantíssima, mas considero que a narrativa mais interessante de seu reinado seja a do relacionamento do rei com os filhos, suas “pequenas águias”. Charlie, você a contaria para nós?

Pretendo resumi-la em umas poucas palavras, para depois explicá-la mais profundamente. Havia um belo aposento no castelo de Winchester, adornado com cenas alegóricas e coloridas que representavam a vida do rei. Algum tempo depois, ele ordenou que fosse retratada uma grande águia, no centro, rodeada por quatro pequenas águias. Enquanto três delas atacavam a maior, a quarta águia a fitava atentamente. Consta que o rei comentou: “As quatro pequenas águias são os meus quatro filhos, que irão perseguir-me até eu morrer. A menor delas, que eu amo ternamente, é quem irá me ferir, e mais gravemente. Está esperando pelo momento de arrancar-me os olhos com o bico”.

Belo começo. E então?

Henrique II tinha quatro filhos. Henrique, o mais velho, tinha agora dezoito anos. Sua coroação, enquanto o pai ainda vivia, havia sido contestada por Thomas Becket, que provou-se correto em suas suposições. Ricardo tinha dezesseis anos, Geofredo quinze e João, seu favorito, era um garotinho apelidado pela corte de “João sem Terra”, porque não teria qualquer herança, mas a quem o rei pretendia ceder o domínio da Irlanda.

Como assim, “Thomas Becket provou-se correto em suas suposições”?

Becket havia sido contra a coroação do jovem Henrique, afirmando categoricamente que era imprudente anunciar um novo rei durante o reinado do antigo. E ele, infelizmente, estava certo, pois foi o jovem príncipe Henrique, estimulado pelo rei da França e por sua mãe, Eleanor da Aquitânia, quem iniciou a história desonrada que irei contar.

Hmmm…

Primeiro, Henrique demandou que sua jovem esposa, Marguerite, filha do rei da França, fosse coroada com ele. Seu pai consentiu, e isso foi feito. Pouco depois, exigiu tomar posse de uma parte dos domínios do pai, durante a vida do mesmo. Quando isso lhe foi recusado, Henrique deixou a propriedade paterna, com o coração repleto de amargura e ressentimento, e refugiou-se na coerte francesa. Um ou dois dias depois, seus irmãos Ricardo e Geofredo também partiram. Eleanor tentou fazer o mesmo, mas foi descoberta pelos homens de Henrique II e aprisionada, merecidamente, por dezesseis anos.

Hmmm…

Esse foi o início de uma guerra entre o pai e os filhos. O rei Henrique II defendeu seus domínios com unhas e dentes e seus exércitos derrotaram os de seus filhos. Os conspiradores, então, propuseram a paz, e Henrique e Geofredo apresentaram seus pedidos de desculpas. O rei os perdoou prontamente.

E Ricardo?

Ricardo resistiu por seis semanas; mas, derrotado, também se entregou, e também foi perdoado pelo pai.

As guerras cessaram?

De modo algum. Perdoar esses príncipes indignos era sinônimo de dar-lhes mais tempo para organizar uma nova conspiração. É com pesar que declaro que os príncipes ingleses eram tão dissimulados, desleais e desonrados que o rei não deveria ter confiado neles mais do que confiaria em qualquer criminoso preso nas galés.

Então, imagino que o rei tenha sido atacado novamente por suas pequenas águias.

No ano seguinte, o príncipe Henrique se rebelou novamente, e seu pai o perdoou mais uma vez. Oito anos mais tarde, o príncipe Ricardo rebelou-se contra o irmão mais velho, e foi então que o príncipe Geofredo declarou, de modo infame, que os irmãos jamais concordariam em qualquer coisa, a não ser quando se uniam contra o pai. Um ano se passou desde o perdão mais recente e o príncipe Henrique se rebelou mais uma vez – e foi perdoado mais uma vez, como de costume, após jurar que estava sinceramente arrependido. Não o suficiente, receio, para deixar de se rebelar uma outra vez, ao lado de Geofredo.

O príncipe Henrique nunca chegou a reinar na Inglaterra, não é mesmo?

Não, porque o fim desse príncipe pérfido estava chegando. Ele adoeceu em uma cidade francesa; sua consciência o reprovava terrivelmente, então pediu que mensageiros chamassem seu pai, implorando que este fosse encontrá-lo e que o perdoasse uma última vez em seu leito de morte. O generoso rei, que sempre foi extremamente nobre e clemente em relação aos filhos amados, teria partido para vê-lo; mas levando em consideração que já havia sido enganado pelos filhos outras vezes, e que esse pedido era anormal à sua natureza perversa, os conselheiros reais suspeitaram de traição e afirmaram que o rei não poderia arriscar sua vida para satisfazer o último desejo de um traidor, ainda que o traidor em questão fosse seu filho mais velho.

Acho que ninguém teria ido.

O rei não foi ao encontro do primogênito, mas mandou um anel que sempre mantinha consigo como símbolo de perdão. E então, o príncipe Henrique, jovem de beleza lendária, charme juvenil, olhos azuis brilhantes e cabelos meio dourados meio ruivos que marcaram a famosa dinastia Plantageneta, morreu miseravelmente. Ao receber o anel, o príncipe rompeu em lágrimas, confessando àqueles que rodeavam sua cama de como havia sido um filho cruel e desleal. Disse aos padres: “Tirem-me dessa cama e deitem-me nas cinzas, para que eu possa morrer em suplício, rezando para que Deus me perdoe”. Assim morreu o príncipe Henrique, aos vinte e sete anos.

E seus irmãos?

Três anos mais tarde, o príncipe Geofredo morreu em um torneio, esmagado por um cavalo. Sobraram os príncipes Ricardo e João. O último já era um jovenzinho, e havia jurado solenemente manter-se fiel ao pai.

Ricardo rebelou-se novamente, como já era de se imaginar?

Sim, encorajado por seu amigo e rei francês, Filipe II. Foi rendido, e o pai o perdoou mais uma vez, após Ricardo jurar sobre o Novo Testamento que jamais se rebelaria novamente; passado um ano, voltou-se contra Henrique II; e, na presença deste, ajoelhou-se perante o rei da França e declarou que, com sua ajuda, ele tomaria todos os bens franceses do rei da Inglaterra.

Qual foi a reação do rei diante de tal infidelidade?

Henrique II estava adoentado, fatigado pela falsidade de seus filhos e pela humilhação atroz a qual Ricardo o expôs. O rei infeliz, que até então se manteve firme, deu início ao seu declínio. Quando seus nobres o desertaram, um por um, o angustiado rei, com o coração partido, consentiu em estabelecer a paz, mas um sofrimento final estava reservado para ele. Levaram-lhe a proposta do tratado de paz, e também lhe passaram a lista deles que o desertaram – que, de acordo com o tratado, deveriam ser perdoados. O primeiro nome na lista era o príncipe João, seu filho favorito. “Meu amado filho”, exclamou o rei, agonizando, “João, aquele que mais amei! João, por quem suportei todas essas desgraças! Ele também me traiu”. Infeliz e desesperado, disse: “Agora, seja o que Deus quiser. Nada mais me interessa!” Pouco depois, expirou.

E foi este o início do reinado de Ricardo Coração de Leão. Não foi um ato muito honrado, para um rei que afirmava defender a vontade de Cristo partindo para as Cruzadas, trair o pai após jurar fidelidade diante do Novo Testamento.

Anos depois, lisonjeando-se, o então rei Ricardo I afirmou ter o coração de um leão. No entanto, penso eu, seria melhor que tivesse um coração humano. O seu coração, do que quer que tenha sido feito, foi sombrio, gelado e desleal, o levou a ferir um pai que o amava e carecia, mais do que o coração de qualquer fera do bosque, de um único toque de ternura e humanidade.