Corrupção e morte na ditadura: o caso Capemi/Baumgarten, segundo o autor do furo de reportagem

Atualizado em 3 de março de 2021 às 17:10
O general Newton Cruz

O DCM apresenta uma série sobre os maiores escândalos da ditadura. 

A primeira matéria, sobre o caso Delfin, foi publicada.

A empreitada coube a J. CARLOS DE ASSIS, jornalista e economista, autor de mais de 25 livros sobre Economia Política brasileira e mundial, entre os quais “A Chave do Tesouro”, “Os Mandarins da República” e “Sete Mandamentos do Jornalismo Investigativo”, todos sobre casos daquele período.

“Aos 72 anos, há décadas afastado do jornalismo diário, convém que me apresente: sou jornalista, e também economista político – o que de certa forma me roubou do jornalismo. Trabalhei em todos os principais jornais  do país. Hoje tenho escrito como editor ou colaborador voluntário para blogs e revistas”, conta Assis.

“Aceitei com prazer o convite do DCM para fazer esta série de matérias sobre os escândalos financeiros da ditadura como um serviço público, e como uma contribuição à formação dos jovens jornalistas que foram distorcidos pela Lava Jato”.

Ele finaliza: “Meu dileto amigo, Jânio de Freitas, o maior jornalista político do país, costuma dizer que só há jornalismo, já que todos os jornalismos são investigativos. Ele tem razão, em parte. No caso dele é verdade. Mas o fato objetivo no Brasil, viciado pela Lava Jato, é que normalmente se faz um jornalismo absolutamente burocrático e sem sal, comandado por pautas. É uma bênção dos céus que haja exceções”.

O caso Capemi/Baumgarten

O escândalo da Capemi caracterizou-se como um dos maiores da história da República. Tratava-se do maior montepio militar do Brasil que até então gozava de alta credibilidade no mercado. Foi possível porque um subchefe do extinto SNI-Serviço Nacional de Informação, por alguma razão que nunca descobri, decidiu atacar o presidente da entidade, general Ademar Messias de Aragão, mediante manipulação da Folha de São Paulo. Ele juntou um vasto material com supostas provas contra o general e ofereceu a caixa de documentos ao jornal, em São Paulo, em caráter sigiloso. A Folha, que não tinha ou achava não ter alguém capaz de destrinchá-lo lá, repassou o pacote para mim no Rio.

Eu não iria embarcar na versão do ex-subchefe do SNI sem uma investigação adequada. Por mais que me antipatizasse com generais no tempo da ditadura, minha primeira providência, como repórter, seria ouvir o coronel – por um compromisso feito, mantive sigilo sobre seu nome – e o próprio general, nessa ordem. Combinei com o coronel um encontro na casa dele, na Lagoa. Notei de cara que  tentava me manipular, talvez com algum propósito de vingança ou de chantagem contra o presidente da Capemi. Precisava investigar, e para isso consegui uma entrevista diretamente com o general Aragão.

Alguns minutos de conversa bastaram para me convencer de que ele, um ex-chefe de Intendência do Exército, era uma pessoa evidentemente honesta, pelo menos no que se referia aos negócios da Capemi. De fato, mandou que fosse aberta para mim, através do novo superintendente do grupo, o coronel Ivany, toda a documentação da Agropecuária que eu pedisse. Ninguém que pretendesse esconder alguma coisa tomaria essa atitude. O dado adicional que me foi posteriormente revelado era que o coronel Ivany era assessor do general Euler Bentes, candidato presidencial “democrático” contra o general Figueiredo.

Na pilha de documentos que me havia sido dada, a maioria eram contratos de exploração de madeiras na floresta de Tucuruí, na zona de influência do que seria o lago da hidrelétrica então em construção no Pará. Naturalmente, a Capemi, como montepio, não tinha qualquer especialização em exploração de madeira. Tudo era muito estranho, pelo que decidi voltar a ouvir o general Aragão. Isso deixou muito contrariado o coronel, o que me fez ficar mais intrigado ainda, colocando em suspeição quem, até então, era a minha fonte inicial do escândalo.

Aragão não gostava de falar com a imprensa. Falou comigo à custa de um grande esforço de persuasão. Contudo de novo, em nossa conversa, percebi que agira sobretudo por ingenuidade. Incrível, mas isso acontece também com generais. A Agropecuária Capemi, criada para a exploração da madeira de Tucuruí, sem base técnica, a partir da posição financeira sólida do  montepio, estava em processo virtualmente falimentar. Soube depois que o responsável pela tragédia empresarial era um economista chamado Fernando Pessoa, que reencontraremos à frente. Naquele momento, porém, era importante entender o processo de virtual quebra.

A base das fraudes, como dito, eram os contratos de exploração de madeira, escritos de forma tosca, e espantosamente pagos adiantado. Para se entender a extensão dessas fraudes basta dizer que a floresta de Tucuruí era um mundo a ser explorado, devendo o término do trabalho coincidir com o início do enchimento da barragem da hidrelétrica. Entretanto, tendo em vista a inexperiência da Capemi, a obra da Agropecuária nunca foi terminada. E a floresta acabou sendo inundada sem a retirada da madeira, o que pode representar um risco para a usina até hoje,  em face do apodrecimento das árvores debaixo da água.

Isso, contudo, era apenas a ponta do iceberg. Paralelamente aos contratos das madeireiras descobri três outros nominalmente de publicidade, com agência totalmente desconhecida. Somavam uns 3 milhões de dólares na época. No conjunto dos negócios da Capemi não era muito. Mas me chamaram a atenção. E nisso descobri que o dinheiro escoava diretamente para os bolsos de um pessoal ligado ao general Newton Cruz, então chefe da Agência Central do antigo SNI. Não tive nenhuma dúvida de que era um caixa dois, de finalidade pública ou privada. De qualquer forma, escrevi e mandei a matéria para São Paulo, com a devida fundamentação.

Passaram-se os dias e nada de vê-la publicada. Havia sido engavetada pelo então editor, Boris Casoy,  o homem que “ainda não queria passar o Brasil a limpo”. Então, num dia que, para outros propósitos, estava em São Paulo, falei com meu diretor Silveira que, mesmo se tivesse de dormir lá, iria tentar falar com o seu Frias, dono do jornal. Não deu outra. Fiquei lá de meio dia até 8h da noite. Finalmente, Frias me recebeu por dez minutos. Disse a ele que estava num veio jornalístico importante, de alguma forma arriscado, mas apoiado em bons fundamentos e em contratos. Apesar do risco, não tinha medo de continuar com a investigação. Exceto, porém, numa circunstância: se souberem que tenho a matéria e ela não ser publicada. Nesse caso, eu seria um arquivo vivo. Frias, porém, numa atitude que me valeu o respeito dele para sempre, garantiu:

— Publicarei tudo de que você tiver provas.

Então retruquei, para total desconforto de Boris: “Podemos então começar por uma matéria que está engavetada na redação”. Assim foi feito. Na sequência, expus o conteúdo do material que tinha, ampliado por novas investigações, nos seguintes termos, dando uma visão geral do escândalo:

“Rio – Pessoas agindo em nome do SNI ou com sua cobertura, entre as quais quatro com ligações de parentesco com o general Newton Cruz, chefe da Agência Central, montaram em menos de dois anos uma gigantesca operação de desvio de recursos da Agropecuária Capemi, contratada para exploração da madeira da área inundável de Tucuruí, apropriando-se, no mínimo, de US$ 10 milhões (dinheiro da época) pelo que se deduz apenas de contratos por elas assinados.

“Cúmplice, provavelmente involuntário, da operação, o presidente do sistema Capemi, general Ademar Messias Aragão, foi quem também deu o passo decisivo para desmontá-la, ao demitir, em maio do ano passado, o antigo diretor-gerente (depois superintendente) da Agropecuária, Fernando Pessoa. Atualmente desaparecido de seu apartamento no Rio, Pessoa, apresentado ao general como homem do SNI, atraiu empresas de reputação suspeita para o Projeto Tucuruí e assinou, pelo lado da Capemi, os principais contratos dos quais resultaria o desvio.

Figueiredo e Alexandre von Baumgarten em uma reunião

Do lado do governo, o coordenador do Projeto Tucuruí pelo Ministério da Agricultura, Roberto Amaral – ainda cargo, e atualmente conduzindo as negociações para deslocar a Capemi do empreendimento -, deu total cobertura a Fernando Pessoa. Articulou com ele três contratos pelos quais um amigo comum, Antônio Mourão Abissâmara – egresso, como Amaral, do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal – IBDF -, conseguiria US$ 3 milhões da Agropecuária. Com esse dinheiro, ele se apropriou da marca “O Cruzeiro”, até então de Alexandre Von Baumgarten, mantendo a revista em circulação apesar de um passivo de mais de Rr$ 110 milhões.”

“No rastro da operação Capemi, emerge agora uma sequela de repercussões econômicas e sociais: o sistema Capemi, que tem no seu coração o maior e até há pouco mais bem organizado pecúlio do país, com cerca de 1 milhão de sócios, está seriamente abalado e oscila entre ser socorrido pelo governo ou sucumbir. Em Tucuruí, as empresas que se mantiveram no projeto, como subcontratadas da Capemi, devido exclusivamente a garantias formais do governo que não foram cumpridas, estão em situação pré-falimentar, afetando diretamente o emprego de mais de 8 mil pessoas.”

No curto período de tempo em que matérias minhas sobre a Capemi ficaram sistematicamente engavetadas na sede em São Paulo, fiquei extremamente preocupado, por razões de segurança pessoal, em me tornar um arquivo vivo. Então cometi o que pode parecer uma deslealdade com o meu próprio jornal, pois juntei todo o material que tinha na forma de cópias de relatórios e contratos reservados, e os entreguei para um amigo meu da Sucursal Rio d’O Estado de S.Paulo, a fim de que, se quisesse, o republicasse enquanto a Folha não me cobrisse. Ele efetivamente o republicou – entretanto, nessa altura, a Folha já havia voltado a me publicar – e ganhou um prêmio Esso de reportagem por conta. Pensei comigo: que critério é esse do prêmio Esso de dar prêmio por matéria requentada!

A propósito, ganhei o prêmio Esso de reportagem em 1983 por conta da reportagem sobre o escândalo da Delfin. Fiquei bastante desapontado. Tendo em vista os concorrentes, deveria ter ganho o Prêmio Esso de Jornalismo. José Nêumane Pinto, um dos julgadores, meu  amigo pessoal desde o Jornal do Brasil, tentou justificar mas não me convenceu. A reportagem que valeu a Veja o prêmio de jornalismo era referente ao caso Baumgarten, baseadas no que se tornaria conhecido como relatório Baumgarten, entregue a Veja. Claramente, me pareceu uma manipulação para tirar o foco das manchetes do caso Delfin, devido a manobras de Ronald Levinsohn.

As razões para eu desconfiar que esse era o caso eram óbvias. Baumgarten, que havia tentado ressuscitar a revista O Cruzeiro como porta-voz da extrema direita brasileira, repassou a revista para Abissâmara. Posteriormente desapareceu misteriosamente na baía de Guanabara. Testemunhas o teriam visto num barco com uma loura. Apareceu depois outra testemunha dizendo que havia reconhecido o general Newton Cruz nas imediações do barco. Nunca dei crédito a esse boato, embora um delegado houvesse formalizado o inquérito. O testemunho, que se fosse verdadeiro me teria agradado muito, era evidentemente falso, e nunca foi comprovado.

Como um dos expedientes usados por Ronald para cultivar amizades e cooptar autoridades e jornalistas costumava ser a cessão de apartamentos e casas em condições especialíssimas de venda financiada ou de aluguel, a revelação da propriedade do apartamento carioca na Rua Paul Redfern, 20, no Leblon, onde Baumgarten morava e teria sido encontrado o relatório Baumgarten, poderia ter levantado a trilha de uma relação entre o senhorio e o inquilino, ou o empresário fraudulento apaniguado do poder político e o propagandista de direita.

Estranhamente, aceitou-se, sem maiores suspeitas, a palavras de Ronald, pela boca de uma filha de Baumgarten, de que ele não conhecia o pai dela. Essa pista mal explorada já era um indício de boa cobertura que o dono da Delfin sempre teve na imprensa brasileira, ou numa parte importante dela. Na verdade, certamente, Veja era cúmplice da farsa porque sequer esboçou a intenção de relacionar os casos Baumgarten, porque ela muito provavelmente o tinha recebido o relatório de Ronald, obtido no apartamento dele, Capemi e Delfin.

Mesmo sem considerar as relações factuais e dos personagens, os três escândalos se vinculavam pela época – pouco depois das primeiras eleições gerais efetivamente livres (por efeito da anistia) desde o golpe de 64. Eram revelações de fraudes, mas traziam sobretudo a marca dos comprometimentos políticos. O mais chocante entre eles, porém – por envolver um assassinato e implicar dois generais, principais chefes do SNI, baseava-se no relatório da vítima – autêntico, porém de um morto. E não de um morto que se podia chamar de ingênuo ou inteiramente inocente, mas de um conhecido intrigante de extrema direita.

Se estivesse vivo, o jornalista Alexandre Von Baumgarten – ou se, estando vivo, não passasse por morto -, seu relatório não seria levado a sério em nenhum órgão de comunicação responsável por depender excessivamente da palavra ou de credibilidade de quem já não podia sustentar a primeira, nem gozar da segunda. Além disso, considerando suas bravatas de que dominava relações de poder em Tucuruí, não era possível que isso pudesse ser verdade pois, no relatório, chamava Tucuruí de Itacuruí.

Com efeito, muitos dos que o conheceram sabiam que Baumgarten costumava alardear suas estreitas vinculações com o “serviço”.

Metera-se no projeto O Cruzeiro em íntima colaboração com a sociedade de extrema direita Tradição, Família e Propriedade (TFP), apoiado pelos setores radicais da comunidade de informações. Prestou serviços relevantes aos extremistas, bastando lembrar que seus artigos provocadores na revista tinham sido reproduzidos pelo CIEX – Centro de Informações do Exército como parte da campanha de descrédito do general Euler Bentes, junto aos oficiais das Forças Armadas, na época do arranjo sucessório do general Geisel. Quando apareceu assassinado muitos poderiam supor, com razão, que se tratava de um informante deserdado e ressentido, transitando no terreno da fantasia, da bravata e da chantagem.

O relatório por ele legado assemelha-se a um libelo extemporâneo de quem, tendo criado a oportunidade através de influentes amigos no “serviço”, de ganhar muito dinheiro na operação O Cruzeiro, foi desalojado em proveito do sucessor nesse negócio, Antônio Mourão Abissâmara, aparentado do chefe da Agência Central do SNI (depois comandante militar do Planalto), general Newton Cruz. Contudo, se Von Baumgarten perdera a chance de sua vida para Abissâmara, por causa de um parente influente deste, a única “prova” sugerida no relatório era a relação de parentesco – o que na realidade não prova muito, uma vez que parente de gente influente às vezes se dá a liberdade de tomar iniciativas desse tipo mesmo quando não autorizado. Prova porém o suficiente para despertar suspeitas. Ou no mínimo provocar uma investigação criteriosa do envolvimento do pessoal do SNI na operação O Cruzeiro e Capemi, e suas sequelas.

Ronald Levinsohn em evento com Boni (ao centro) em SP

No entanto, a instituição que deveria investigar o crime, por dever de ofício, a Polícia Civil do Rio, não pareceu muito entusiasmada, sobretudo pela impertinente recusa de alguns militares em depor. A simples menção da Constituição de uma CPI pela Câmara Federal sobre o tema era tomada como intolerável provocação ou revanchismo. O governo fechou-se em copas na sua arrogância de sempre, limitando-se a sancionar uma nota explicativa totalmente insatisfatória, oriunda do próprio SNI. A imprensa que corajosamente chegara a esse ponto arriscava-se a não poder ultrapassá-lo se insistisse em atacar o front fortificado da “comunidade” onde a resistência oficial se concentrava. Um caminho alternativo era contornar a blindagem de proteção política do SNI e rastrear os interesses financeiros por trás do escândalo. Este, o ponto fraco do autoritarismo em exaustão: os interesses econômicos insatisfeitos ou contrariados!

Por conta  do escândalo da Capemi, e a despeito de tê-lo apurado e escrito de à prova de qualquer questionamento do governo, o ministro-chefe do SNI, general Medeiros, e o ministro da Agricultura, Amaury Stábile, decidiram me processar e pedir meu enquadramento na Lei de Segurança Nacional. Não sei se as novas gerações tem ideia do que tratava essa lei. Ela não punia ações, punia intenções. Dizia, textualmente: divulgar matéria falsa, ou “fatos verdadeiros deturpados”, esta ou aquela punição. Então, se um juiz militar considerasse subjetivamente deturpado algum fato verdadeiro que eu havia publicado, poderia ser condenado inapelavelmente.

Minha sorte foi que a Folha me providenciou o maior criminalista brasileiro, Antônio Evaristo de Moraes Filho, que fez uma peça ontológica em minha defesa e em defesa da liberdade de imprensa. E a combinação de Evaristo com um juiz de primeira instância extremamente consciencioso e infenso a pressões, dr. Sussekind, liquidou a denúncia no Supremo Tribunal Federal com total eficácia. Este, por sinal, foi o único processo intentado contra mim depois de anos de jornalismo “quente”, em âmbito privado ou público. E este é um bom indício de que não falsifiquei a verdade em nenhuma circunstância, sequer a verdade da LSN.