Crise na Argentina: famílias vendem bens pessoais para conseguir comer

Atualizado em 26 de outubro de 2025 às 18:14
Uma mulher examina roupas usadas disponíveis para compra em um mercado ao ar livre em Villa Fiorito. Foto: Divulgação

A feira popular de Fiorito, bairro onde nasceu Diego Maradona, se transformou em símbolo da crise econômica argentina. Às vésperas das eleições legislativas, cada vez mais moradores recorrem à venda de roupas, utensílios e até objetos encontrados nas ruas para garantir o sustento.

A feira se estende por mais de 20 quarteirões em Buenos Aires, misturando barracas de verduras e ferramentas aos “manteros”, vendedores informais que expõem seus produtos em mantas no chão.

Gladys Gutiérrez, de 46 anos, é uma das que dependem dessa renda. “Nos fins de semana, como não rendemos muito em casa, viemos aqui para estender um pouco a manta”, conta. Durante a semana, ela vende produtos de limpeza, mas, com a queda no consumo, precisou fazer um empréstimo para vender frios e bebidas.

O marido, pedreiro, está desempregado. “As pessoas estão cansadas, estão irritadas”, resume. Desde que Javier Milei assumiu a presidência, há quase dois anos, a inflação caiu drasticamente.

Mas o ajuste fiscal trouxe efeitos colaterais: suspensão de obras públicas, retração no comércio e perda de empregos formais. A informalidade já atinge cerca de 40% da população economicamente ativa, e, segundo a consultoria Aresco, três em cada quatro argentinos dizem ter mais dificuldade de fechar o mês do que em 2023.

Para o economista Guillermo Oliveto, “70% da população — formada pela classe média baixa e trabalhadora — chega ao fim do mês já no dia 15”. Ele descreve um ciclo de endividamento crescente: “Pago a dívida, os gastos fixos e fico sem dinheiro”.

Um homem mostra um guarda-roupa de segunda mão à venda em um mercado de rua em Villa Fiorito. Foto: Divulgação

Na feira, o cheiro dos assados se mistura ao lixo acumulado nas calçadas, enquanto vendedores anunciam desde garrafas térmicas quebradas até peças de eletrodomésticos. “Me lembra muito 2001”, diz Juana Sena, 71 anos, recordando a crise que mergulhou o país no caos social.

Fiorito, um reduto historicamente peronista, vota neste domingo (26). Milei teve 27% dos votos no segundo turno presidencial de 2023, mas nas eleições provinciais de setembro caiu para 16%. O cientista político Matías Mora, morador do bairro, observa que o comércio informal não começou com Milei, “mas se aprofundou e se agravou sob sua gestão”.

Mora alerta para o avanço do endividamento popular. “As pessoas estão se endividando para comer e, no melhor dos casos, para abrir um negócio, mas com juros altíssimos”, afirma. Segundo ele, agiotas locais cobram entre 40% e 50% ao mês.

Um relatório do Centro de Análise Econômica IETSE aponta que nove em cada dez famílias argentinas têm dívidas, 88% delas contraídas entre 2024 e 2025. O pesquisador cunhou o termo “manteros digitais” para descrever quem vende pelas redes sociais, complementando a renda das feiras presenciais.

“Neste novo ecossistema, onde as redes convivem com os estandes e grupos de WhatsApp substituem o emprego formal, surge uma lógica de sobrevivência baseada no engenho popular — mas à custa da saúde física e mental”, conclui Mora.

Guilherme Arandas
Guilherme Arandas, 27 anos, atua como redator no DCM desde 2023. É bacharel em Jornalismo e está cursando pós-graduação em Jornalismo Contemporâneo e Digital. Grande entusiasta de cultura pop, tem uma gata chamada Lilly e frequentemente está estressado pelo Corinthians.