Críticas da Marinha a “Almirante Negro” baseiam-se em livro que relativiza a tortura

Atualizado em 2 de junho de 2024 às 12:23
João Cândido, o Almirante Negro. Foto: reprodução

Um livro que minimiza a tortura na Marinha e desrespeita João Cândido, o Almirante Negro, foi utilizado pela instituição para criticar um projeto de lei que busca incluí-lo no Livro dos Heróis da Pátria. A carta, enviada em abril à Câmara pelo comandante da Marinha, almirante Marcos Sampaio Olsen, rejeitou a homenagem ao líder da Revolta da Chibata, ocorrida em 1910.

A Revolta da Chibata foi um levante de marinheiros que resultou na abolição dos castigos corporais na Marinha do Brasil. Apesar da abolição da escravidão em 1888, mais de duas décadas antes, os marinheiros de baixa patente, em sua maioria negros, ainda eram submetidos a chicotadas frequentes. João Cândido liderou essa revolta e se tornou um símbolo da luta contra o racismo.

Vale destacar que o estopim para a revolta ocorreu em 1910, quando a tripulação do encouraçado Minas Gerais presenciou 250 chibatadas aplicadas no marinheiro Marcelino Rodrigues Menezes, que foi mantido preso sem tratamento médico. A rebelião foi rápida e decisiva.

Os documentos que embasaram a carta do comandante da Marinha descreveram o motim como “deplorável” e a conduta de Cândido como “reprovável”. Em resposta ao colunista Guilherme Amado, do Metrópoles, a Marinha citou o livro “Revolta dos Marinheiros, 1910”, de 1988, escrito pelo almirante Hélio Leôncio Martins e publicado pela própria instituição.

O título do livro omite a menção à chibata, que foi a principal demanda do motim e deu nome à revolta na historiografia. Em várias partes do texto, o uso do açoite na Marinha até 1910 é minimizado, sendo atribuído ora a influências estrangeiras, ora a uma resposta aos “maus instintos” dos marinheiros.

João Cândido, o Almirante Negro
João Cândido e outros almirantes. Foto: reprodução

Assim como a escravidão, a tortura física na Marinha só foi oficialmente abolida no Brasil muitos anos após outros países. Em ambos os casos, os negros eram os mais prejudicados.

“No Brasil, entretanto, essas transformações não se deram de maneira tão nítida e rápida. Havíamos herdado da Marinha portuguesa a prática da chibata e os oficiais ingleses, nossos primeiros comandantes, a mantiveram”, afirmou o livro, isentando a Marinha brasileira e destacando uma “argumentação do partido da chibata”, em vigor na instituição até 1910: “Os crimes cometidos a bordo eram de tal monta, o pessoal, em grande parte, primitivo em suas manifestações de selvageria, com agressões, roubos, mortes, que a argumentação do partido da chibata acabava vencedora”

A chibatada que deflagrou a Revolta da Chibata também foi justificada pelo autor do livro utilizado pela Marinha. “Nada foi dito, nem houve comentários, sobre as causas dessa punição”, prosseguiu o livro, insinuando que a chibatada foi justificada.

A Marinha alegou também que Marcelino Rodrigues feriu um colega com uma navalha após ser acusado de levar duas garrafas de cachaça ao navio. O livro afirmou ainda que o “recrutamento defeituoso transformava a Marinha em uma casa de correção”, mais uma vez eximindo a instituição.

O autor ainda usou um expediente incomum para desqualificar João Cândido, transcrevendo uma carta anônima, supostamente escrita por um participante da Revolta da Chibata, assinada como “um ex-marinheiro”. O Almirante Negro foi chamado de “infeliz”, “adulador” e “pobre coitado”.

“João Cândido era odiado por quase todos os companheiros, pois era um tipo adulador, chaleira dos oficiais, capaz de limpar-lhes com a língua a sola dos sapatos. Era um dos timoneiros de bordo, cousa que qualquer analfabeto podia ser”.

A Marinha, no entanto, se contradisse. Inicialmente, afirmou que a carta do comandante “expressa o posicionamento da Força sobre o motim”, mas depois alegou que o livro que embasou o documento “não reflete o entendimento da Marinha” sobre a Revolta da Chibata.

“A Marinha reitera que se baseia em fatos, não havendo viés ideológico ou partidário em seus posicionamentos”, afirmou.

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