CRÔNICA: Um verão pra aprender a fugir de governos e relações tóxicas. Por Paula Vianna

Atualizado em 25 de fevereiro de 2021 às 17:54
Arte/Paula Vianna

Estou voltando da praia, pra onde não ia havia mais de dois anos, em um ônibus lotado. Cinquenta pessoas, quase todas com máscara, metade sem baixar o plástico que nos separa. Botaram esses plásticos nos ônibus agora, separando as poltronas. Mas se não baixamos todos e abotoamos uns aos outros, eles ficam pendurados, balançando como cortina de banheiro velho que mal contém os respingos da água no chão.

A moça da frente fala no celular o tempo todo. Sem máscara. Trabalhando. Pergunto se pode por a máscara, por favor.

– “Até posso”.

Foi na rodoviária de Caraguá que o ônibus lotou, depois de me dar alguma esperança de uma viagem razoavelmente segura na pandemia. Deve ter sido por causa do assento, ainda vazio, ao meu lado. Ou do plástico.
Vulnerável. Vulnerável como uma mulher que acaba de apanhar, sabe? Uma bofetada, um pé no ouvido, um empurrão no chão quando arruma a mala… Vulnerável como alguém que saiu de casa de madrugada, chovendo na estrada. O ar, que já faltava, não vem mais, a garganta seca, o olho derruba água. Vulneráveis todos, integridade física ameaçada, emocional escangalhada.

Penso em como vim parar aqui e me encolho. O plano de viagem parecia tão razoável. Pra quem depende de transporte público, não tem casa na praia ou interior, salário pra pagar hospedagem, não existem pequenos escapes. A pandemia só pode ser vivida intensamente. E é assim que tem sido há um ano. Marido, filho, trabalho às vezes sim, às vezes não, tudo junto, misturado, sufocado.

Até que o convite pra um fim de semana prolongado na praia chegou na hora certa. Na ida, poderia usar o aplicativo de ônibus, que informa o número total de reservas. E o Buser cobra metade do preço da passagem. Ou seja, se lotasse na última hora, o que àquela hora já parecia improvável, poderia desistir sem tanta sofrência. Pra voltar, tinha carona confirmada da amiga, dona da casa onde ficaria.

Sábado, ela resolveu receber mais pessoas para dormir em sua casa: cinco. Me fechei no quarto pra evitar contato. Assunto encerrado.

Mais uma noite, a treta engasgada e empanada num peixe com fritas brota à mesa do restaurante. Voltamos pra casa, peço pra deixar o caldo da polêmica pra outro dia, ganho uma bofetada. Um amigo e um conhecido dela que estavam junto ignoram a cena. Pergunto se fariam o mesmo se fosse um homem me batendo. Mais uma bofetada estala no meu ouvido e uma ameaça: “se quiser ficar aqui, fica de boca calada, não dá um pio.” Vou arrumar a mala agachada e a “miga” surge pelas costas e me empurra pro chão.

Arte/Paula Viannaconfinamento

Saio da casa para ir ao encontro deles, ela vem atrás, outro tapa. O guarda do condomínio de luxo se aproxima e me orienta a chamar um Uber e procurar uma pousada 24 horas numa praia próxima.

Volto para buscar a mala. Os presentes riem e desfrutam de um Brasil distópico onde a diferença é resolvida na força bruta. Estamos em 2021 e mulher ainda derruba mulher. Quantos discursos sobre sororidade acabam quando há relações de poder envolvidas?

Há alguns dias, escrevia sobre a intolerância no BBB21. Intolerância entre iguais carregadas de opressão. Quase 12 horas depois de agredida, acuada e expulsa, estou num ônibus lotado, voltando pra minha casa.
Fotografo o caos. A moça, dessa vez, diz que não põe a máscara enquanto não terminar de alimentar a filha, que não vai descer o tal plástico e que não posso gravar seu rosto.

– Não é vídeo, estou fotografando a lotação do ônibus, nada pessoal – respondo.
– Tem um policial no ônibus, chama ele – diz ela.

Entre mim, ela, a filha e o homem que respira a 50 cm da minha cara, há uma pandemia, pessoas mortas. Milhões de pessoas mortas, outras tantas pessoas mortas por dentro. Mortas ao aceitarem um, dois, três tapas na cara sem poder descer do ônibus. Mortas ao se acostumaram com situações que não podem mudar.
– Não vai adiantar nada reclamar na rodoviária – a moça resmunga.

Queria acreditar que um banho de álcool gel, as mãos concentradas nesse teclado pra não limpar os olhos, coçar o nariz, vão me manter segura. Só penso em abraçar meu filho e meu marido, aquele com quem estou confinada há um ano, de quem precisava, só por dois ou três dias, não ver a fuça. Aquele que está comigo há quase 15 anos de muita treta e quilômetros infinitos de desentendimentos, sim, mas comigo e não contra mim.

Um homem largo ao lado, uma mulher folgada à frente respiram a menos de um metro. Penso nas mulheres que sofrem com a violência de seus parceiros, dia sim, dia não, sem ter pra onde ir. Todas as mortes me agulham.
Não sou amarga. Acredito na felicidade e sonho com dias bonitos. Só não conheço praia, cerveja, trilha na mata, peixe frito ou assado, riso alto escancarado que valham a pena, se não forem junto de quem nos respeita e protege.

Já em São Paulo, disparo pelo Tietê. A moça, com sua filhinha, segura a porta daquele elevador grandão e vazio pra mim. Pensava em descer pelas escadas, entro. Vivendo e aprendendo a fugir de governos e relações tóxicas. E a reconhecer quem, podres poderes abaixo, é igual no lugar pequeno que o mundo quer nos reservar nesse momento.

Paula Vianna, 48, é jornalista cultural