Crônica: Vida no interior é a liberdade de ter a Paulista aberta todos os dias. Por Paula Corrêa

Atualizado em 22 de fevereiro de 2021 às 21:07

Por Paula Corrêa*, especial para o DCM

No dia 1º de janeiro, andávamos nas ruas vazias desse interior. Sol muito forte, poucas árvores nas ruas. Não sei por quê, mas nesse interior aqui, há muitas árvores, mangueiras enormes, centenárias, goiabeiras, mas poucas estão nas calçadas, a maioria dentro dos terrenos – baldios ou das casas. Além disso, as calçadas são estreitas.

É nesse momento que entendo quando dizem que as “pessoas no interior andam no meio da rua”. É porque não tem muita calçada, gente! E outra, quer sensação melhor de liberdade do que andar no meio da rua sem ser xingada e atropelada? Para uma paulistana como eu, que já foi xingada e atropelada (de bike), andar soberanamente no meio da rua é a glória. Veja bem, a rua não está “fechada para carros” ou “aberta para pedestres” como a Avenida Paulista forçosamente faz aos domingos. A rua aqui é assim. Não só uma, todas elas.

(E vale lembrar, a rua aberta é um legado Haddadiano, este professor que foi xingado outro dia por um rapaz com sotaque italiano. É algo que virou um patrimônio e um orgulho paulistanos, quando você encontra de um tudo sobre um mesmo asfalto. O nome mesmo que eu dei? Ah, liberdade!)

Pois andávamos pela rua quando vi uma gatinha filhote se enroscar num portão. Parecia agility, ia de um lado para o outro, como uma cobrinha, e começou a miar. Imediatamente mostrei ao meu filho, que se encantou com ela. E ela com ele.

Pulou em seu colo e ele me disse que talvez ela não estivesse passando bem porque tremia. Quando cheguei perto, entendi. Era o ronrom. Expliquei a ele que os gatos fazem isso quando estão felizes e sentindo prazer. Dizem que os gatos escolhem seus donos. Eu tentei, levemente, dizer para deixa-la onde estava, mas as forças contrárias eram enormes: dia 1 de janeiro (auspicioso, não?) gata pulando no colo do filho, ronronando desde o primeiro minuto, e ele já definindo um nome, que horas depois, no caminho do veterinário ouvindo Caetano, foi determinante para sua vida longa na nossa família: Tieta.

(Caetano, este que a direita adora desancar. Bem, como todo o patrimônio cultural. Mas, veja bem, este patrimônio, como Jorge Amado, o real nomeador neste caso, é o que dá nome também aos nossos afetos, oferece molduras precisas aos momentos em que gostaríamos de pendurar na parede e chamar de arte, felicidade, epifania; e muitas vezes, quando tomamos as decisões de: ter um filho, casar, adotar um gatinho, ligar para alguém amado, voltar no tempo e lembrar de um show que você foi com seu irmão com quem quase não fala mais… A música e os artistas, não custa lembrar, são essas vozes a ecoar na memória e na transcendência).

Agora Tieta tem uma coleirinha com um sininho com seu nome, e faz um barulhinho igual a personagem de Jorge Amado quando anda por aí, e tem nosso telefone marcado. Queremos Tieta ronronando entre nós.

A escritora Paula Corrêa (Crédito: Fernando Cavalcanti)

*Paula Corrêa é escritora, poeta e jornalista. Nascida em São Paulo em 1978, cursou Comunicação e Artes do Corpo e é formada em Jornalismo pela PUC-SP. Escreveu os livros de poesia “In Vitro” (2004), “As Calotas Não Me Protegem do Sol (2010)” e “Tudo o que Mãe Diz É Sagrado”, este último pela editora Leya, com quarta capa de Eliane Brum e Ignácio de Loyola Brandão.

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