
A relação entre Jair Bolsonaro e o ex-deputado Rubens Paiva, torturado e assassinado na ditadura militar, é marcada por ataques pessoais, acusações sem provas e um sentimento de inveja por parte do ex-presidente. Eldorado Paulista (SP), no Vale do Ribeira, onde Bolsonaro passou sua adolescência, foi cenário da influência da família Paiva.
O sucesso do filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, reaviva esse atrito ao trazer à tona o desaparecimento de Rubens Paiva, que teve a morte confirmada 40 anos após seu sumiço em 1971. O longa explora o impacto de sua morte e a luta de sua esposa, Eunice Paiva, por justiça. Essa busca por memória e reparação, contudo, frequentemente encontrou oposição nas falas e gestos de Bolsonaro, em uma animosidade que já dura décadas.
Rubens Paiva tornou-se um símbolo da repressão do regime militar. Após seu assassinato, o corpo foi enterrado e desenterrado em várias ocasiões por agentes da repressão até seus restos serem jogados ao mar, na costa da cidade do Rio de Janeiro, em 1973.
Em contraste, Jair Bolsonaro construiu sua carreira política exaltando essa mesma ditadura. Nos anos 1990, ainda como deputado, ele utilizava o plenário da Câmara para negar o assassinato do ex-deputado pelos militares, contrariando investigações da Comissão Nacional da Verdade. O ex-presidente afirmou que Paiva havia sido morto por guerrilheiros de esquerda, em um esforço para deslocar a responsabilidade da ditadura.
Durante a inauguração de um busto em homenagem a Rubens Paiva na Câmara dos Deputados, em 2014, Bolsonaro teria cuspido na estátua e xingado sua família, chamando o ex-deputado de “comunista” e “vagabundo”. Os ataques foram relatados por Chico Paiva Avelino, neto de Rubens.
“Era Jair Bolsonaro, junto com alguns amigos (talvez fossem os filhos, na época eu não sabia quem eram), que se deu ao trabalho do sair de seu gabinete e vir em nossa direção, gritando que ‘Rubens Paiva teve o que mereceu, comunista desgraçado, vagabundo!’. Ao passar por nós, deu uma cusparada no busto. Uma cusparada. Em uma homenagem a um colega deputado brutalmente assassinado”, afirmou Chico na época.
Bolsonaro e os Paivas

Foto: Fernando Cavalcanti/BBC News Brasil
O antagonismo entre os dois é também geográfico e familiar. Jaime Paiva, pai de Rubens, era um “coronel” local, liderando a economia e a vida social no município por meio da Fazenda Caraitá, que pretecia à família. Dr. Jaime, como era conhecido, ainda foi prefeito da cidade duas vezes. Na primeira, de 1956 a 1959, fez a ponte sobre o rio Ribeira e uma das escolas locais. Na segunda, em 1968, eleito pela Arena, partido da ditadura, ficou pouco menos de um ano.
Para Bolsonaro, que teve uma infância humilde, a fortuna e o poder dos Paiva representavam uma distância social intransponível. Na biografia Mito ou Verdade: Jair Messias Bolsonaro, escrita por seu filho Flávio Bolsonaro, o senador indica que as diferenças de classe incomodavam o presidente. Flávio escreve que “parte considerável do território da cidade de Eldorado Paulista era de domínio particular, uma fazenda enorme chamada Caraitá – que hoje seria um latifúndio”.

A Fazenda Caraitá foi mencionada por Bolsonaro para insinuar uma suposta ligação entre Paiva e Carlos Lamarca, guerrilheiro que operou na região, uma declaração repetida em discursos como deputado. No entanto, registros do cartório e relatos históricos refutam essa versão, indicando que não houve fornecimento de recursos ou apoio direto dos Paiva às atividades de Lamarca.
Mesmo amigos próximos de Bolsonaro na época, como João Evangelista e Antônio Carlos, não têm conhecimento dessa ligação. “Nunca ouvi falar que financiava o Lamarca, não”, disse Antônio à BBC, quando perguntado sobre o tema.
Bolsonaro retratava os filhos de Rubens Paiva como jovens privilegiados que desfrutavam de luxos inacessíveis à população de Eldorado. No livro, Flávio escreve que os filhos de Rubens Paiva, da mesma faixa etária de Bolsonaro, eram vistos comprando picolés Kibon, “inacessíveis à garotada local, que ao ver um deles jogar o palito fora, corria na expectativa de estar premiado com ‘vale um picolé’ marcado na madeira”.
Sobre esse episódio, um dos filhos de Rubens Paiva, o escritor Marcelo Rubens Paiva, diz que “não tomava sorvete” e “não tinha irmãos”, mas apenas irmãs. “Talvez ele me confunda com meus primos”, ele diz. “Quando ele tinha 16 anos, eu tinha 11 e foi a última vez que fui a Eldorado”.
Pouco depois do episódio da cusparada, em 2014, Marcelo publicou uma coluna no jornal Estado de S. Paulo para rebater as acusações feitas por Bolsonaro à memória de seu pai e à família nos últimos vinte anos.
“Como deputado, Jair Bolsonaro costuma proferir desde os anos 1990 na Câmara dos Deputados discursos mentirosos sobre meu pai, Rubens Paiva, um deputado federal como ele”, escreveu. “A família Rubens Paiva, além de conviver com a dor morte sob tortura absurda por tantas décadas, ainda tem que aturar o ódio delirante de Bolsonaro (…).”
Os Paivas saíram de Eldorado nos anos 1970, enquanto os Bolsonaros prosperaram na região e são a família mais rico da cidade. Hoje, os irmãos do ex-presidente comandam uma rede de lojas de móveis e materiais de construção, presente em mais de dez municípios do Vale do Ribeira.
Ainda estou aqui
A ironia histórica se revela no momento em que Bolsonaro enfrenta múltiplos indiciamentos por crimes contra a democracia, enquanto a memória de Rubens Paiva ganha força em um contexto de justiça simbólica, relembrando o impacto de sua luta contra o autoritarismo. O filme Ainda Estou aqui, ao dar visibilidade a essas histórias, ajuda a reequilibrar as narrativas e confrontar o passado para construir um futuro mais justo.
A relação entre Bolsonaro e Rubens Paiva, portanto, vai além de acusações e gestos isolados. Representa um embate entre duas visões antagônicas de país: uma que glorifica o autoritarismo e outra que luta por memória, verdade e reparação. Em Ainda Estou Aqui, essa disputa encontra um novo capítulo, reforçando que a história nunca se encerra.