Da água da bica à Sabesp: a seca em São Paulo é culpa de quem?

Atualizado em 9 de maio de 2014 às 9:58
O rio Jacareí
O rio Jacareí

 

Dentre todos os culpados pela falta d’água em São Paulo, São Pedro é o único inocente. As estiagens e as deficiências de abastecimento são tanto antigas quanto previsíveis. Sempre foi assim, desde a chegada dos colonizadores. Os índios, ao contrário, viviam numa fartura da qual só herdamos a memória.

A aparente fartura e a seca recentes têm ambas a mesma origem. Pra quem não sabe, ou não lembra, o sistema Cantareira foi projetado pela antigaComasp – Companhia Metropolitana de Águas de São Paulo, pouco depois do golpe de 1964, em plena ditadura. Naquela época já se previa – novamente – que iria faltar água em São Paulo. E os milicos tinham pressa em fazer grandes obras para impressionar.

Até 1880 só havia água de pipa ou de bica. Em 1881 foi criada a Companhia Cantareira de Águas e Esgotos para o fornecimento de três mil metros cúbicos por dia, equivalentes a 50% da água encanada consumida na capital A empresa privada – veja você! – foi estatizada pelo governo do estado por causa dos péssimos serviços prestados à população. Naquela época o sucateamento das empresas era feito para estatizá-las, e não privatizá-las, como é feito hoje.

A Comasp foi criada em 1968 para a captação e tratamento das águas que abasteciam a Grande São Paulo. E eles previram tudo direitinho. O sistema Cantareira seria um conjunto de cinco reservatórios correspondentes às barragens do rios Jaguari e Jacareí, Cachoeira, Atibainha, Juqueri e Águas Claras que iriam produzir 33 metros cúbicos por segundo, quando todas as represas ficassem prontas. A construção foi feita em duas etapas: Na primeira foram feitas as barragens a jusante do rio Cachoeira, produzindo 11m³/s. Depois foi acrescido o reservatório da barragem dos rios Jaguari e Jacareí, para atingir os 33m³/s previstos para o sistema.

“Reservatório”, como se sabe, foi feito para “reservar” a água dos rios, permitindo regular seu aproveitamento em casos de seca ou chuva. E osreservatórios do sistema Cantareira foram planejados para fornecer água em abundância por bastante tempo, a ponto de fazer os paulistas esquecerem por algum tempo a escassez de água que os milicos pretenderam acabar.

“Volume morto”, o lodo que se acumula nos fundo dos reservatórios e está prestes a ser filtrado para retirar água da lama, passou a ser chamado de “reserva técnica”, como se o reservatórios não fossem uma reserva e um tanque de decantação ao mesmo tempo. E “rodízio” virou um neologismo para “racionamento”. Assim como você deixa seu carro na garagem uma vez por semana, também poderá encostar seu chuveiro, cozinha e máquina de lavar.

Em 1972, os economistas Paulo Roberto Davidoff Cruz e Cláudia dos Passos Claro, da Secretaria de Planejamento do estado previam, com bastante exatidão, que a demanda por água encanada na região metropolitana seria de 68,29 metros cúbicos por segundo em 1990, para uma população estimada de 17 milhões de habitantes. Essa previsão só foi atingida no ano 2.000. Hoje, a população servida pela Sabesp na Grande São Paulo é de 16,3 milhões de pessoas, que receberam 73,2 metros cúbicos por segundo somente no ano passado. Se eles erraram, foi para mais, não para menos.

Quem distribuía a água captada pela Comasp, porém, não era ela própria como faz a Sabesp hoje. Era a Saec – Superintendência de Águas e Esgotos na Capital, sucessora do Departamento de Águas e Esgotos, o DAE. Em 1972 a Saec já admitia uma perda de 30% da água distribuída por causa de vazamentos nas tubulações. Exatamente o mesmo índice da Sabesp hoje, 42 anos depois.

Os estudos conduzidos pela Seplan paulista consideraram apenas a demanda para consumo doméstico. A demanda industrial não foi prevista, pois segundo eles seria improvável garantir o fornecimento dos grandes volumes contínuos exigidos pelas indústrias, além da ausência, naquela época, “de indicadores confiáveis sobre a estimativa de grande consumo industrial”. Os industriais preferem captar a água de que necessitam do que depender do abastecimento público duvidoso, acreditavam os técnicos do Estado desde então.

O engenheiro Haroldo Jenzler, presidente da Comasp, calculou em 1972 a necessidade de investimentos de 100 milhões de dólares ao ano durante 20 anos para realizar as obras projetadas para a Grande São Paulo. E concluiu: “Ou aceitamos as metas que serviram de base para esses investimentos e conseguimos os recursos necessários, ou deveremos modificar as metas.”

Os governos estadual e federal resolveram manter as metas e por isso criou a Sabesp em 1973, pela fusão da Comasp, da Saec – distribuidora da capital – do Fomento Estadual de Saneamento Básico e da Sanevale do Vale do Paraíba, entre outras empresas. Ela “vende” diretamente ao consumidor a água tratada que traz dos rios. E “vende” também para os grandes consumidores industriais urbanos, que não dispõem de fontes próprias de abastecimento, como supunham os planos iniciais.

seca

Para atender a demanda industrial, a Sabesp ampliou em 13 vezes sua produção de água de “reúso”, proveniente do tratamento parcial de esgotos, em sociedade com a Odebrecht. Ainda assim, a produção é de apenas 395 mil metros cúbicos por mês, equivalentes a 0,15 metros por segundo. Se a população cresceu menos do que as previsões iniciais, a falta de previsões sobre o crescimento do consumo industrial fez toda a diferença.

Não são surpreendentes, portanto, os dados dos resultados obtidos pela unidade de negócios Metropolitana Norte da Sabesp, encravada no atual sertão paulista.

Segundo os dados apresentados pela unidade da estatal para concorrer ao Prêmio Nacional da Qualidade em Saneamento 2013, o volume total faturado pela unidade que abastece toda a zona norte da Grande São Paulo de São Paulo, mais os municípios produtores do sistema Cantareira – Bragança Paulista, Joanópolis, Piracaia, Atibaia, Mairiporã e Franco da Rocha -, passou de 350 milhões de metros cúbicos em 2010 para 370 milhões em 2012. Um crescimento de 6% na véspera da seca.

No mesmo período, a rentabilidade expressa em termos do Ebitda – lucro antes de juros e impostos – subiu de 65,9 para 72,6%. A arrecadação da unidade metropolitana norte passou de 863 milhões de reais em 2010 para um bilhão em 2012. O incremento do fornecimento para grandes consumidores – indústrias – saltou de 18 para 35% do volume faturado, incluída ai a incansável e sedenta construção civil.

Esses resultados são bons? Depende pra quem. Desde 2002 a Sabesp passou a negociar ações no Novo Mercado da Bovespa. As ações subiram ininterruptamente de seis para trinta reais entre 2008 e 2012. O crescimento médio do lucro líquido foi de 23% nos últimos cinco anos.

Nos últimos dez anos a companhia distribuiu aproximadamente quatro bilhões de reais em dividendos, dos quais a metade no período de 2010 a 2012, quando a Metropolitana Norte batia recordes de faturamento.

A região metropolitana como um todo responde por 75% do faturamento da companhia.

O rating internacional passou de BB a BB+. Como um desempenho tão fantástico pode ser classificado como classe B?

Para os acionistas foi um bom negócio, pelo menos até recentemente. As previsões de queda no faturamento e aumento das despesas deverão afetar esses resultados no curto prazo.

Sabesp e Petrobrás devem se tornar os troféus em disputa na campanha eleitoral que se aproxima. Ambas são grandes empresas brasileiras de economia mista, sólidas e bem administradas por profissionais competentes. As duas são importantes não só para seus clientes, funcionários e acionistas, mas para o país.

Uma se deu mal na Cantareira e a outra em Pasadena. Nenhum dos dois prejuízos é irreversível para gigantes como elas.

As ações da Petrobrás não ostentam a valorização e o rendimento esfuziantes da Sabesp na última década. Mesmo assim a produção de petróleo bateu novo recorde em março. As ações da empresa dispararam 4% na quarta-feira, dia 7, e a Folha anunciou que o motivo foi a queda nas intenções de voto na presidenta.

Infelizmente não dá pra beber petróleo. Nem engolir essa.